Publicado originalmente em: Cidades Sustentáveis
Desmatamento, energia, emissões e saneamento básico foram temas de vários relatórios publicados nas últimas semanas – e também são caminhos e desafios para atingirmos os objetivos e metas da Agenda 2030
Por Beto Gomes, do Programa Cidades Sustentáveis
A observação da natureza nos ensina muitas coisas desde os tempos mais remotos. Povos antigos entenderam como funcionam as estações do ano, os ciclos das chuvas e as épocas de estiagem a partir do momento em que começaram a prestar atenção no seu entorno. Ao perceberem que existia um padrão nos vários fenômenos que os cercava, ao olhar para o céu em busca de respostas, desenvolveram a ciência, a agricultura, a matemática e muitas outras habilidades e áreas do conhecimento.
Essa relação simbiótica mudou muito ao longo do tempo. É fato que a nossa conexão com a natureza ainda é marcada por grandes descobertas, pela curiosidade que nos é peculiar e pelo interesse que nos move a buscar soluções para os nossos problemas e necessidades. Mas passamos a negar a realidade e a explorar os bens e serviços ecossistêmicos como se não houvesse amanhã. Como se não dependêssemos desses recursos daqui a cinco, dez, vinte ou cem anos. Como se não dependêssemos deles hoje. Hoje, agora, neste minuto.
O problema é que neste minuto, em algum lugar da Amazônia, grileiros estão invadindo terras que não são suas; garimpeiros estão abrindo clarões no meio da floresta nativa; milhares de metros cúbicos de árvores estão sendo derrubados de forma ilegal, seja para alimentar o contrabando de madeira ou para expandir os campos de pasto da agropecuária. Enquanto isso, a época da seca está chegando na região, e os focos de incêndios e queimadas só tendem a aumentar. Como se a ação antropogênica não fosse suficiente para devastar o maior patrimônio ambiental do planeta.
As florestas fornecem água potável para um terço das maiores cidades do mundo. Pelo menos 2 bilhões de pessoas dependem do setor agrícola para sua subsistência, principalmente as populações pobres e rurais. Sim, precisamos cultivar para comer, precisamos de água para sobreviver, de plantas para tratar nossas doenças, de madeira, de árvores e dos inúmeros serviços que as florestas, os oceanos e o solo nos oferecem – e de graça, na maioria das vezes. Até carbono eles retiram da atmosfera, ajudando a regular a temperatura do planeta, tornando nossos verões mais amenos e os invernos, menos rigorosos.
Os benefícios dos serviços ecossistêmicos vão muito além das necessidades básicas das pessoas. Segundo o Banco Mundial, metade do PIB global depende da preservação dos nossos biomas. Foto: Rodrigo Kugnharski (Unsplash)
Mas os ganhos e benefícios que a natureza provê para a humanidade vão muito além das nossas necessidades básicas de sobrevivência. Também não se restringem apenas às questões ambientais. A preservação e a restauração de biomas são uma forma de gerar renda e combater a fome e a pobreza. E também mexem com o nosso bolso. Metade do PIB mundial depende dos nossos ecossistemas. Cada dólar investido em restauração gera até 30 dólares em benefícios econômicos, segundo o relatório Nature Risk Rising , divulgado pelo Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2020.
Mudança de rota (e de matriz energética)
Na última semana de maio, vários estudos e relatórios com foco nas questões ambientais foram publicados por organizações nacionais e internacionais. A Agência Internacional de Energia (IAE, na sigla em inglês) divulgou um documento com diretrizes e orientações para zerar as emissões de carbono até 2050.
Na publicação, a agência faz uma proposta ambiciosa para substituir a matriz energética no mundo. Defende a redução drástica do uso de combustíveis fósseis como fonte de energia, de modo que, nas próximas décadas, dois terços da matriz sejam compostos pela produção eólica, solar, geotérmica, hidráulica e pela bioenergia. Para a IAE, a exploração de petróleo deve se restringir à produção de insumos e subprodutos como o plástico. Deve, ainda, abrir mão do uso de óleo e do gás para gerar eletricidade.
O setor de energia é responsável por três quartos das emissões de gases de efeito estufa no mundo. No Brasil, a maior fonte de carbono é o desmatamento, que atingiu em maio uma área do tamanho do Rio de Janeiro
E aqui vale lembrar: a entidade surgiu em 1974, na esteira da maior crise de petróleo que o mundo já conheceu, justamente para orientar e moderar as políticas do setor. Ao recomendar as energias renováveis e reconhecer os prejuízos dos combustíveis fósseis – que nortearam o posicionamento da IAE desde a sua fundação –, o relatório foi recebido com surpresa pela comunidade internacional. E não por acaso.
Ao longo das 224 páginas do documento, a agência levanta várias questões. De modo geral, propõe 400 medidas para “descarbonizar” o planeta. A entidade pede urgência, afirma que o tempo é muito curto e que as ações precisam ser tomadas agora. Fala em limitar o aquecimento global, em adotar tecnologias mais limpas e até em aumentar a produção de veículos elétricos dos atuais 5% da frota para 60%.
A preocupação faz sentido. O setor de energia é responsável por três quartos das emissões de gases de efeito estufa (GEEs) no mundo, e apresenta hoje o maior desafio para evitarmos um aumento da temperatura média global nas próximas décadas. Não basta, portanto, simplesmente parar de extrair petróleo do subsolo – o que, por si só, já afeta interesses nacionais e supranacionais. É preciso substitui-lo por novas fontes, e isso também requer investimento, vontade e força política.
Mas o desmatamento…No Brasil, o cenário é diferente, mas não menos desafiador. Estamos entre os maiores emissores de carbono do mundo, e nossa principal fonte de emissão é o desmatamento. Nesta sexta-feira (4/6), um reporte divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou que a Amazônia Legal bateu mais um recorde histórico de desflorestação, pelo terceiro mês seguido. Até o dia 28 de maio, a área sob alerta de desmatamento atingiu 1.180 km², o equivalente à cidade o Rio de Janeiro. É a maior área de alertas desde o início da série do sistema Deter-B, iniciada pelo Inpe em 2016, e a primeira vez que o número ultrapassa 1.000 km² no mês de maio. Em relação ao mesmo mês do ano passado, o aumento foi de 41%.
A extração de madeira ilegal e a expansão dos campos de pasto para o gado são os dois principais motivos do desmatamento – e as principais causas de emissões de carbono no Brasil. Foto: Paralaxis / Shutterstock
Mas o desmatamento não é uma exclusividade do bioma amazônico. Há algumas semanas, a Fundação SOS Mata Atlântica divulgou os novos dados do Atlas da Mata Atlântica, o bioma mais destruído do Brasil. O levantamento mostrou que, entre 2019 e 2020, o desmatamento se intensificou em dez dos 17 estados do bioma. Em São Paulo, os números são assustadores: em um ano, o crescimento foi de 400%. Em outros três estados (Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo), o aumento também foi superior a 100%. Na soma geral dos estados, a Mata Atlântica perdeu pouco mais de 13 mil hectares em 2020 – uma área equivalente a 13 mil campos de futebol.
As questões ambientais na Agenda 2030A transversalidade dos temas ambientais e a influência que eles exercem na economia e nas questões sociais se reflete também na Agenda 2030. Não por acaso, aparecem em mais de um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS). E quando olhamos para os avanços e desafios das cidades brasileiras para cumprir as várias metas estabelecidas pela ONU em 2015, temos uma boa ideia do impacto que provocamos no meio ambiente.
Lançado no final de março, o Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades – Brasil (IDSC-BR) coletou e sistematizou dados de 770 cidades brasileiras, incluindo as 26 capitais estaduais, cidades das regiões metropolitanas mais populosas do país, de todos os biomas, além daquelas que têm mais de 200 mil eleitores. Ao todo, foram utilizados 88 indicadores relacionados aos diversos temas abordados pelos 17 ODS.
O índice mostra que 85 cidades já atingiram o ODS 13 (Ação contra a Mudança Global do Clima) e 364 estão muito distantes de cumprir as metas deste objetivo – ficaram nas duas piores faixas de classificação. Dois indicadores compõem o ODS 13: emissões brutas de carbono per capita e percentual do município desflorestado. Olhados isoladamente, esses indicadores também têm muito a nos dizer.
A pequena Adrianópolis, no Paraná, tem 6 mil habitantes e emite seis vezes mais carbono por habitante do que o Qatar, o país com o maior índice de emissões per capita do mundo
A cidade de Adrianópolis, por exemplo, fica no oeste do Paraná e tem menos de 6 mil habitantes. Entre os 770 municípios que compõem o IDSC-BR, ela apresenta o maior nível de emissão de carbono per capita, com 225 tCO2eq por ano. Isso significa que emite mais de 24 vezes a média de emissões brutas per capita do Brasil e seis vezes mais que a do Qatar, o país com maior emissão per capita do mundo.
Além do município paranaense, outras 183 cidades que fazem parte do índice emitem, por habitante, mais do que a média brasileira. Neste indicador, o IDSC-BR mostra que 27 dos 51 municípios localizados no bioma amazônico estão na pior faixa de classificação, abaixo dos 50 pontos (em uma escala que vai de 0 a 100). O pior deles é Moju, no Pará, que também ocupa a última posição na classificação geral dos 770 municípios monitorados pelo índice – o IDSC-BR atribui uma pontuação para cada ODS e outra geral, para o conjunto dos 17 objetivos. De 100 pontos possíveis, Moju somou pouco mais de 32.
Saneamento: falta o básicoCerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e 93 milhões não contam com coleta de esgoto, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2019). Como alguns cenários sempre podem piorar, no final de maio o Instituto Trata Brasil publicou um estudo mostrando que o Brasil desperdiça 39,2% da água captada. Essa quantidade seria suficiente para abastecer cerca de 63 milhões de pessoas, ou ainda para encher sete vezes o volume dos reservatórios do Cantareira, o maior sistema de captação de água da região metropolitana de São Paulo.
Isso significa que poderíamos cobrir o déficit se resolvêssemos uma parte dos problemas de infraestrutura em saneamento. Mas estamos na direção contrária. O índice de desperdício aumenta desde 2015, porque as perdas acontecem sobretudo na rede de distribuição e, como se sabe, isso exige investimento e manutenção permanentes.
No caso do esgotamento sanitário, a situação é ainda pior. Em nível nacional, a rede atende pouco mais de 54% dos brasileiros. Apenas 49% do esgoto gerado é tratado, e quando se olha o recorte por região e cenário é desolador: o Centro-Oeste tem o maior índice de tratamento (56,8%) e o Norte, o pior (22%). Segundo o Ranking de Saneamento do Instituto Trata Brasil, somente 21 municípios nas 100 maiores cidades do país tratam mais de 80% dos esgotos. Os dados são de 2019.
Das 770 cidades monitoradas pelo IDSC-BR, apenas 16 já atingiram o ODS que fala sobre água potável e saneamento. Catorze estão no estado de São Paulo
Por essas e outras, as cidades brasileiras têm grandes desafios para cumprir o ODS 6 (Água Potável e Saneamento). No Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades (IDSC-BR), este objetivo da Agenda 2030 é composto por cinco indicadores: perda de água; população atendida com serviço de água; população atendida com esgotamento sanitário; população atendida com coleta domiciliar; e doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado.
Das 770 cidades monitoradas pelo IDSC-BR, apenas 16 estão no melhor quartil da classificação e já atingiram o ODS 6. Dessas, 14 estão no estado de São Paulo, uma em Santa Catarina e uma no Rio de Janeiro. Na outra ponta, 355 municípios estão no pior quartil e apresentam grandes desafios para cumprir as metas deste objetivo.
Mesmo nas capitais e grandes cidades, onde supostamente as redes de água e esgoto tendem a chegar a mais pessoas, o cenário é preocupante. Em Porto Velho, a perda de água é de 83,8%; Macapá (74%), Manaus (72%), São Luís (63,7%) e Boa Vista (62,6%) completam a lista das cinco capitais com os maiores índices de desperdício de água. Entre as 26 sedes estaduais monitoradas pelo IDSC-BR, apenas duas têm indicador dentro do valor que o Trata Brasil considera como um padrão de excelência (25%): Campo Grande (19% de perdas) e Goiânia (21,6%). No conjunto as 770 cidades avaliadas pelo índice, 208 ficaram dentro do limite de 25% de desperdício de água.
Soluções Baseadas na Natureza
Ao longo de milhões de anos, a própria natureza encontrou seus meios de se regenerar, compensar perdas e restabelecer o ciclo natural de ecossistemas. Do nosso lado, agimos contra essa força poderosa durante muito tempo. Canalizamos rios, construímos piscinões para evitar enchentes, ampliamos diques e reservatórios de água, investimos milhões na transposição de rios e no aterramento de áreas enormes.
Essas soluções convencionais, caras e muitas vezes nada eficientes só agravaram o impacto que as mudanças climáticas provocam hoje em cidades do Brasil e do mundo. Também reduziram a resiliência e a capacidade dos municípios de responder de forma satisfatória aos efeitos do aquecimento global. As consequências estão aí: enchentes fora de época, invernos mais rigorosos, recordes históricos de calor, aumento do nível dos oceanos, secas mais prolongadas e uma série de desastres que convencionamos chamar de “naturais”, como se a atividade humana não tivesse responsabilidade alguma sobre essa suposta “resposta” da natureza.
No final de maio, o governo federal emitiu um alerta de emergência hídrica para os próximos seis meses em cinco estados na bacia do rio Paraná: Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. O documento, elaborado conjuntamente por órgãos técnicos como o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), classifica a situação desses estados como “severa”. A expectativa é de um volume baixo de chuvas no período. Esse foi o primeiro alerta do gênero em 111 anos de serviços meteorológicos no Brasil.
No contexto atual – e considerando também nosso histórico de degradação ambiental, principalmente no período pós-Revolução Industrial –, é fundamental que voltemos a observar e a aprender com a natureza. Caminhos para isso existem. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) cunhou um termo que sintetiza essa ideia e preconiza uma série de ações e iniciativas para enfrentarmos as mudanças climáticas e os efeitos do aquecimento global: soluções baseadas na natureza (SbN).
Das propostas mais simples a soluções que passam por estudos técnicos multidisciplinares, as SbN podem nos ajudar a restabelecer uma relação mais equilibrada com o meio ambiente. E, com isso, a melhorar nossa qualidade de vida em vários aspectos. Árvores e espaços mais verdes tornam o solo mais permeável e ajudam a reduzir o volume das enchentes, além de amenizar os efeitos das ilhas de calor. Hortas urbanas, também – e ainda têm o benefício de fortalecer o vínculo entre moradores do mesmo bairro. A restauração de ecossistemas naturais de áreas costeiras pode aumentar a resiliência de cidades litorâneas a eventos extremos. E por aí vai, com ações ainda mais complexas.
Em Brasília, por exemplo, uma técnica chamada fitorremediação pretende descontaminar o solo do segundo maior aterro a céu aberto da América Latina. O método consiste na utilização de espécies vegetais para reter os diversos metais que se acumularam no solo ao longo do ano. Explicando de forma bem simples, elas absorvem em suas raízes, caules e folhas os elementos contaminantes presentes na terra.
O uso de espécies vegetais que absorvem os metais contaminantes do solo está ajudando a recuperar o segundo maior aterro a céu aberto da América Latina, em Brasília. Foto: Leopoldo Silva (Agência Senado)
Apoiada pelo Projeto CITinova e ainda em fase de desenvolvimento, a iniciativa promoveu o plantio de 500 mudas de 10 espécies nativas do Cerrado, além de uma espécie exótica, em uma área de um hectare. A expectativa é que o projeto-piloto possa fornecer informações sobre as espécies que respondem de forma mais eficiente na descontaminação de metais pesados do solo; se as espécies do Cerrado respondem melhor do que a espécie exótica plantada; e qual é o tempo necessário mínimo para que se dê a descontaminação do solo por meio dessa técnica. Outras ações do gênero podem ser acessadas neste artigo .
Três dias atrás, as Soluções Baseadas na Natureza também foram o tema principal do relatório State of Finance for Nature , divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), em parceria com o Banco Mundial e a Economics of Land Degradation Initiative (ELD). O documento calcula que, até 2050, é preciso investir US$ 8 trilhões para financiar ações de enfrentamento às mudanças climáticas, preservação da biodiversidade e recuperação do solo.
É muito dinheiro, mas, em termos proporcionais, o valor corresponde a 3,5% do PIB global em 2019. Diluído ao longo do tempo, não é um investimento inviável – ao contrário. O maior empecilho, no entanto, é colocar a pauta ambiental como prioridade na agenda política. O relatório sugere, por exemplo, que os governos redirecionem os recursos de subsídios agrícolas e de combustíveis fósseis para políticas e ações de proteção da natureza, sobretudo as SbN.
Embora isso seja algo impensável no atual contexto político brasileiro, a ciência nos mostra que ainda é possível descarbonizar o planeta. Fica como alento para o Dia Mundial do Meio Ambiente, mas também como alerta para começarmos a agir agora. Se não observarmos a natureza para entender seus sinais, como fizeram nossos antepassados, só nos restará fugir para as montanhas.
Publicado originalmente em: Cidades Sustentáveis