11 de Setembro, 2021
Dez anos depois da ocupação das praças gregas que abriu caminho ao fim da bipolarização política e ao braço de ferro do país com Bruxelas, Stathis Kouvelakis reflete sobre o movimento, a sua estratégia e as razões da sua derrota.
O movimento de ocupação das praças gregas de 2011 ocorre na encruzilhada de dois ciclos. O primeiro é internacional. Começou do outro lado do Mediterrâneo, com a revolução tunisina e a revolta da Praça Tahrir, e depois passou para Espanha com os Indignados e o 15M, antes de migrar, após a etapa grega, para norte, principalmente para os Estados Unidos com o movimento Occupy, antes de regressar às margens do Mediterrâneo com a ocupação do Parque Gezi em Istambul, seguido de movimentos semelhantes noutras cidades turcas. O segundo ciclo é o das mobilizações que irromperam na Grécia assim que o primeiro Memorando1 foi votado em Maio de 2010 e continuou, sob diversas formas, até ao Verão de 2015.
Apesar das suas diferenças, estes movimentos partilham algumas características comuns, particularmente nos países em torno do Mediterrâneo: carácter de massa, composição interclassista, apoio maioritário da população, peso específico da categoria dos jovens licenciados, e um vasto repertório de ações em que a dimensão espacial – a ocupação de praças e espaços públicos – ocupa um lugar central. Não menos marcantes, porém, são as características comuns da sua constituição subjectiva: ao irromperem à margem dos quadros organizativos e clivagens políticas estabelecidas, estes movimentos enfatizaram fortemente a auto-organização e combinaram a afirmação de formas de expressão política democráticas e/ou participativas diretas com exigências económicas e sociais. Finalmente, todas elas demonstraram um forte carácter “nacional”, com a presença generalizada de bandeiras nacionais, um distanciamento de facto das referências simbólicas e históricas da esquerda, mas também um verdadeiro internacionalismo, referindo-se a práticas de solidariedade, influência mútua e circulação transnacional de símbolos, formas de agir e slogans.
Estamos portanto a lidar com um ciclo relativamente unificado de movimentos populares de grande escala com características inovadoras, com uma dimensão insurrecional no caso dos mais importantes.
Neste sentido, a experiência grega, certamente um dos pontos altos deste ciclo, adquire um significado mais amplo, tanto no espaço como no tempo, tal como sugerido em particular pelo novo ciclo internacional de revoltas que começou em 2019 na Argélia e no Chile (sem dúvida que devemos incluir também os Coletes Amarelos franceses) e que encontra o seu alicerce, e alguns dos seus traços marcantes, no do início da década.
O momento da “crise orgânica”
A compreensão da experiência grega permite-nos assim tirar algumas conclusões mais gerais sobre o paradoxo que este ciclo de movimentos realçou: a divergência entre a sua dimensão insurrecional de massas e a fraqueza da sua eficácia política, por outras palavras, a incapacidade destes movimentos em produzir progressos duradouros em direcção aos objectivos que afirmavam ter2. Nas observações seguintes, tentaremos fornecer alguns elementos de análise que possam lançar luz sobre as razões desta evolução. Para tal, partiremos de um conceito que inicialmente propusemos há cerca de dez anos durante uma intervenção “a quente” nos acontecimentos e que foi posteriormente retomado em alguns outros textos3. Este conceito é o da “crise orgânica” elaborado por Antonio Gramsci nos seus Cadernos da Prisão durante os dois anos da ascensão ao poder do nazismo4.
A crise orgânica refere-se a uma conjuntura marcada por uma súbita e radical rutura nas relações de representação entre as classes sociais e as forças políticas que anteriormente tinham desempenhado esta função. É uma forma específica de crise política, própria de um Estado parlamentar em que um sistema institucional alargado e diferenciado, portanto pluralista, organiza as condições de consentimento dos de baixo ao domínio do bloco burguês. Este sistema hegemónico é abalado nos seus fundamentos e perde a sua coesão – daí o carácter “orgânico” da crise – sob o efeito de um duplo fator: por um lado, o fracasso da classe dominante num projeto estratégico, por exemplo, uma guerra ou um assunto de importância nacional. Por outro lado, pela súbita mudança por parte das grandes massas da passividade para uma atitude ativa.
Esta transição, aponta Gramsci, leva a uma explosão de exigências das massas em movimento, mas estas exigências, nas circunstâncias em causa, constituem um conjunto “inorgânico” (disorganico), ou seja, um todo não coerente. Um conjunto que constitui, contudo, seguindo ainda Gramsci, uma “revolução”, por outras palavrs um movimento que coloca, sem a resolver, a exigência de uma rutura radical capaz de pôr fim a uma crise que assume o carácter de crise de hegemonia, de crise do Estado como um todo.
A “crise orgânica” não é enquanto tal uma crise revolucionária, mas contém alguns dos seus elementos e pode conduzir a esta; o seu resultado depende sobretudo de uma intervenção “subjetiva”, a das forças políticas que lutam para tomar a direção do processo de modo a dar-lhe uma orientação determinada.
Esta análise de Gramsci apareceu-nos desde o início como uma chave insubstituível para compreender as características específicas e a direção da crise grega na Primavera de 2011. A terapia de choque instituída pelos memorandos corresponde claramente a uma derrota estratégica da classe dominante grega ao desfazer os fundamentos do contrato social pós-19745, transformando a visão do país de “integração europeia” num caminho da cruz e impondo um regime duradouro de subordinação do país e perda da soberania nacional.
A combinação destas três dimensões (social, ideológica e nacional) leva à deslegitimação não só do pessoal político mas também do sistema hegemónico como um todo. Daí o colapso da credibilidade dos meios de comunicação social, dos “intelectuais orgânicos” do establishment e o questionamento das próprias instituições representativas, incluindo as forças que nelas funcionavam como oposição, ou seja, a esquerda. Tudo isto assinala tanto um questionamento radical da capacidade dos que estão no topo para liderar a sociedade e o país, como a impossibilidade de formar alternativas dentro do sistema político bipartidário, tal como se cristalizou desde os anos 19806.
Convém sublinhar neste ponto a importância particular da dimensão nacional da crise. O regime de tutela imposto pelos Memorandos levou à perda da “função nacional” (Gramsci) da classe dominante grega e do seu pessoal, o que foi combinado com um ataque às classes trabalhadoras de uma brutalidade sem precedentes pelos padrões da Europa Ocidental do pós-guerra – mas em todos os aspectos semelhantes às “terapias de choque” infligidas a muitos dos países do Sul e Leste da Europa Global a partir dos anos 1980-1990.
Esta combinação da dimensão nacional e da violência da ofensiva antipopular explica a profundidade e o carácter “multi-sectorial” da crise grega se a compararmos, por exemplo, com a crise espanhola ou portuguesa dos mesmos anos. Também explica porque é que a bandeira nacional era tão dominante nas praças gregas, provocando por vezes incompreensão por parte dos ativistas de esquerda que não compreendiam o significado desta declaração de separação entre o povo-nação e os representantes que falam e agem em seu nome.
Mas o enfraquecimento brutal da capacidade hegemónica da classe dominante que resultou desta dupla dimensão nacional e social está também na base da oportunidade histórica que a crise representou para a esquerda radical, que se viu subitamente, e sem o ter procurado, em posição de lutar pela hegemonia, uma oportunidade que, como sabemos, raramente ocorre sob as condições de um regime parlamentar que atingiu a “maturidade”.
Dinâmica de uma revolta: rumo a uma crise revolucionária?
O “momento das praças” assinala também o segundo aspeto da crise orgânica: a entrada em cena de massas mais vastas, a ativação de camadas populares muito para além das forças políticas e sindicais que, até então, tinham ocupado o protagonismo no ciclo de mobilizações iniciado em Maio de 2010, com a votação parlamentar sobre o primeiro Memorando. Ao mesmo tempo, superando a desconfiança mútua das primeiras semanas – a intervenção das forças militantes da esquerda radical e dos sectores sindicais combativos nas assembleias populares (em particular a da Praça Syntagma) foi um fator importante neste contexto – foi possível construir uma convergência na ação entre o “povo das praças” e o movimento operário e sindical, apesar do descrédito da liderança confederal desconcertada controlada por quadros do PASOK7.
Os pontos altos indiscutíveis do movimento foram os três dias de greve geral nos dias 15, 28 e 29 de Junho, durante os quais a participação em greves e manifestações atingiu níveis não vistos desde os anos 1970. A este respeito, o caso grego difere do espanhol, com os Indignados e o 15M a mostrarem uma exterioridade marcada pela hostilidade relativamente às confederações sindicais, e está mais próximo dos casos egípcio e, sobretudo, tunisino8.
Esta observação permite, antes de mais, ter em conta a escala excecional do movimento grego, que é certamente maior em proporção à população do que os Indignados espanhóis e facilmente comparável com as Primaveras árabes. De acordo com inquéritos rigorosos, no início de Junho de 2011 cerca de 2.800.000 pessoas com mais de 18 anos, ou seja 31% da amostra, declararam a sua “certeza” na intenção de participar no movimento, a que se deve acrescentar pelo menos uma parte dos 21% que declararam uma “forte probabilidade” de o fazer. Ao mesmo tempo, 35% dos inquiridos declararam já ter participado em comícios e outras iniciativas populares organizadas no período anterior.
Tendo em conta que o movimento atingiu o seu pico durante os ajuntamentos que acompanharam a greve geral de 28 e 29 de Junho de 2011, parece certo que pelo menos um terço da população tenha participado ativamente nas mobilizações desse período9. Estes são níveis bastante excecionais de envolvimento ativo da população em movimentos sociais, comparáveis sem dúvida aos alcançados durante eventos como Maio de 68 ou o “Outono quente” italiano. A isto devemos acrescentar que, durante todo este período, a rejeição dos Memorandos e da Troika nunca caiu abaixo de dois terços dos inquiridos.
Estamos, portanto, perante uma clara dinâmica maioritária, o que também explica a duração da mobilização popular. De facto, apesar do refluxo do movimento das praças após a votação do Memorando “intermédio” a 29 de Junho, atingiu um novo pico em Outubro de 2011, com a greve geral mais maciça desde a queda do regime dos coronéis (a 19 e 20 de Outubro) e as manifestações insurrecionais de 28 de Outubro, quando os manifestantes invadiram as comemorações do dia nacional, pondo fim às paradas militares e outros desfiles oficiais e afastando das bancadas os representantes do Estado (incluindo o Presidente da República).
Ao mesmo tempo, o Primeiro-Ministro George Papandreou, que tinha acabado de ser humilhado na Cimeira Europeia de Cannes ao propor a realização de um referendo sobre os Memorandos, demitiu-se e deu lugar a um governo de “grande coligação” dirigido pela União Europeia e liderado pelo banqueiro Loukas Papademos10. Este recorreu rapidamente a uma dupla eleição antecipada (Maio de 2012, seguido de Junho de 2012, a primeira das quais não obteve maioria), que testemunhou o colapso do sistema bipartidário, cujos pilares passaram de um total de 77,4% dos votos nas eleições de Novembro de 2009 (44% para o PASOK, 33,4% para a direita) para 42% – 12% dos quais foram para o PASOK, cujo declínio acelerado se revelou irreversível. Assistimos assim à desintegração de um sistema bipartidário até agora notavelmente estável e ao colapso do seu partido fulcral, o PASOK, que esteve no poder durante 19 dos 30 anos de 1981 a 2011.
Não parece exagero dizer que a crise grega forneceu os elementos de uma situação revolucionária conformes à famosa definição de Lenine – que foi claramente uma das principais fontes de inspiração para a noção gramsciana de “crise orgânica”: “Para que a revolução ocorra, não basta que as massas exploradas e oprimidas se apercebam de que não podem viver como no passado e exigir mudanças. Para que a revolução ocorra, os exploradores não devem ser capazes de viver e governar como antes. Só quando “os de baixo” já não querem e “os de cima” já não podem continuar a viver da maneira anterior, é que a revolução pode triunfar.
Esta verdade é expressa noutros termos: a revolução é impossível sem uma crise nacional (que afeta tanto os explorados como os exploradores); esta última consiste, ainda segundo Lenine, no facto de “as classes dirigentes atravessarem uma crise governamental que atrai para a vida política mesmo as massas mais atrasadas (o índice de qualquer verdadeira revolução é um aumento rápido de dez vezes, ou mesmo de cem vezes, do número de homens capazes de lutar politicamente entre as massas trabalhadoras e oprimidas até agora apáticas)”11.
A condição em falta, a mais decisiva sem dúvida, permaneceu contudo a que Lenine mencionou nesta mesma famosa passagem, mas que não beneficiou, na maioria das vezes, da mesma atenção: “para que uma revolução ocorra, é necessário, antes de mais, conseguir que a maioria dos trabalhadores (ou, em qualquer caso, a maioria dos trabalhadores conscientes, ponderados e politicamente ativos) tenham compreendido perfeitamente a necessidade da revolução e estejam prontos a morrer por ela”12.
Por outras palavras, uma revolução é impossível sem a correspondente disponibilidade do que é tradicionalmente chamado “o factor subjetivo”, uma disponibilidade que, nesta forma, estava obviamente ausente de uma revolta cujo horizonte foi moldado pela rejeição visceral, e transpartidária13, das políticas implementadas pelo pessoal político governante e de forma alguma pela vontade de derrubar a ordem social existente – desenvolveremos este ponto em seguida. O facto é que, pela primeira vez desde as grandes convulsões dos anos 1960 e 1970, a possibilidade de uma ruptura radical do equilíbrio social e político fundamental estava a emergir no país europeu que estava de novo a tornar-se o “elo mais fraco” do centro continental do capitalismo.
Grandeza e limites do movimento das praças
O movimento das praças em 2011 insere-se numa longa série de acontecimentos na história da Grécia moderna marcada pela irrupção impetuosa das massas populares. É aqui que reside a sua grandeza. Mas o carácter repentino e explosivo da revolta popular também determina o carácter contraditório das formas em que ela se manifestou. Em grande parte sem qualquer experiência prévia de organização e mesmo de participação em ações colectivas, as “pessoas das praças” apresentaram um conjunto de exigências e práticas não coerentes, “desorganizadas”, para usar o termo Gramsci, e muitas vezes até contraditórias.
Qualquer pessoa que tenha experimentado a atmosfera da Praça Syntagma nessa altura terá experimentado a mistura de raiva e combatividade, de uma atmosfera vinda das bancadas dos estádios de futebol e do radicalismo de protesto, de rejeição indiscriminada da política e da procura de formas de auto-organização e democracia direta. Isto foi acompanhado de um verdadeiro fascínio por propostas que se apresentaram como “soluções mágicas” para a crise – desde apelos a um regresso à antiga “democracia ateniense” até várias teorias conspiratórias sobre as causas da dívida pública.
Talvez a contradição mais importante tenha sido a condensada na palavra de ordem mais difundida e comummente aceite entre os participantes, nomeadamente a exigência de ‘democracia directa’ [άμεσηδημοκρατία]. Note-se que o termo grego άμεση deve ser traduzido como ‘imediato’ porque tem tanto o significado de direto, dispensando as mediações, como o de algo a ser alcançado imediatamente. E é frequentemente neste segundo sentido que foi compreendido por uma grande parte dos participantes, que não estavam muito familiarizados com os debates complexos sobre as formas representativas ou diretas e/ou participativas da democracia.
Neste sentido, uma das principais limitações do movimento das praças é precisamente o facto de não ter dado um conteúdo real a esta exigência de “imediatismo”. Para muitos, significava uma espécie de anti-parlamentarismo espontâneo, mesmo cru (ilustrado pelo slogan “vamos queimar este bordel parlamentar” regularmente cantado por grandes multidões na Praça Syntagma); para outros, significava uma ideia libertária de democracia sem mediação, cujo modelo se encontrava nas formas de auto-organização que surgiram nas praças ocupadas.
Para outros ainda, era uma questão de uma reforma institucional “cidadã”, indefinida mas radical, que iria no sentido de uma “verdadeira democracia”, ou, mais simplesmente, da restauração de um funcionamento democrático básico violentamente desprezado pela Troika e pela escalada autoritária e repressiva que a acompanhava. O apelo inicial, cujo título foi retomado pela página e pelo grupo de facebook que lançou o movimento de ocupação da Praça Syntagma, intitulava-se “Democracia Real Já!” em referência direta ao slogan dos Indignados de Madrid (Democracia Real Ya!).
No final, o movimento nas praças não conseguiu sintetizar estas ideias, ou pelo menos elementos das mesmas, num projeto alternativo de refundação política. Tal como não conseguiu fazer emergir um plano alternativo de reorganização económica que fosse para além da rejeição das medidas do memorando e do fim da tutela da Troika. A este respeito, partilha o carácter “negativo” das revoltas da última década mencionadas por Alain Badiou quando sublinha que o seu principal, se não exclusivo, fator unificador é a rejeição generalizada dos governantes14.
Parece agora claro que a ausência de um conteúdo positivo, não tanto no sentido da afirmação de uma ideia intemporal, ou de um imaginário que se apresenta simplesmente como a negação do existente, mas de um projeto político alternativo, ancorado em práticas reais e capaz de dar um impulso maioritário, longe de constituir um novo paradigma da política, livre do peso das “ideologias” e das “grandes narrativas” (sempre suspeitas de “totalitarismo”), conduz à impotência e, como regra geral, a uma restauração reacionária, da qual a ditadura do General Sissi é o exemplo mais terrível.
O limite principal do movimento deve, contudo, ser procurado a outro nível, o que determinou sem dúvida – “em última instância”, como se diz – o resto. Não está tanto na incapacidade de formular uma alternativa global, nem mesmo na incapacidade de bloquear a votação no Parlamento sobre o Memorando Intermédio em 29 de Junho de 2011, pois tais objetivos pareciam, desde o início, estar fora do alcance de um movimento eruptivo e heterogéneo, cujo tempo de existência se contava por semanas.
A lacuna decisiva é que ele não deixou para trás uma estrutura ou um projeto de estrutura organizativa capaz de levar a luta popular a um nível superior. Ele deu elementos valiosos para tal tarefa, alguns dos quais provaram ser relevantes e, em parte, duradouros. Renovou espetacularmente o repertório das ações colectivas15 e estimulou – ou reforçou – um número significativo de iniciativas locais de solidariedade, auto-organização e ação directa 16. Mas não permitiu a emergência de um enquadramento que pudesse organizar a luta popular de forma autónoma e coordenada no período que se seguiu, e esta é uma limitação que partilha com movimentos semelhantes que estavam a irromper ao mesmo tempo a nível internacional, mas também, obviamente, com movimentos mais recentes17. É aqui, na nossa opinião, que é preciso procurar a principal razão para a discrepância entre a impressionante capacidade de mobilização de massas que demonstraram e a sua capacidade de alcançar um resultado tangível e positivo.
Do movimento das praças à capitulação do Verão de 2015
Considerado do ponto de vista da unificação estritamente negativa tal como Badiou a critica, o caso grego constitui um desmentido parcial. Desmentido no sentido de que o movimento das praças e, de um modo mais geral, o ciclo de mobilização popular de 2010-2012 levou a uma verdadeira convulsão do equilíbrio político de poder. O vencedor desse período foi, como sabemos, o Syriza porque foi a única força que, com a proposta de um “governo de esquerda”, se apresentou como disposta a satisfazer a exigência de uma rutura política que as mobilizações apresentaram sem serem capazes de a implementar.
Dito de outra forma, naquele contexto, e com a carga simbólica que envolve a esquerda radical num país que viveu uma guerra civil, seguida de várias décadas de perseguição anticomunista, esta proposta surgiu como uma decisão de sair do quadro existente, de recusar o papel de oposição, mas subalterno, que lhe tinha sido atribuído no quadro bipartidário e de enfrentar realmente a questão do poder, mesmo que apenas ao nível do poder governamental. A este respeito, mas apenas a este respeito, o Syriza emergiu como o ator que compreendeu a possibilidade aberta pela “crise orgânica”. Esta é uma lição chave de todo o período: a mobilização popular criou de facto as condições para uma mudança para a esquerda mas, para a sua realização, é necessária uma proposta política estruturada.
Sobre este ponto, abre-se outro capítulo, o das responsabilidades da força particular que assumiu esse papel. Uma análise global não pode ser realizada no âmbito deste texto, já tentámos dar alguns elementos noutros locais18. Digamos apenas, de forma esquemática e concisa, que, no final das contas, o Syriza contentou-se com uma gestão eleitoral estrita da dinâmica criada pela mobilização dos de baixo, sem propor em momento algum um plano para a organização da luta popular, e portanto sem preparar de forma elementar as condições para um resultado vitorioso da batalha. E entre estas condições, uma foi de importância estratégica decisiva: o confronto com a União Europeia e as armas que esta não deixaria de utilizar, de uma forma completamente previsível, contra qualquer governo que ousasse desafiar os programas de “ajustamento estrutural”, a começar pelo instrumento monetário.
Isto não significa que o ciclo político marcado pela ascensão do Syriza tenha sido indiferente ao resultado da crise grega. Por outras palavras, a capitulação de Syriza não significa que “nada aconteceu”, que não se jogou um jogo de significado histórico, e que se perdeu, nesses primeiros sete fatídicos meses de 2015. Mas significa que o verdadeiro momento da verdade nesta sequência não foi o sucesso eleitoral de Syriza de Janeiro de 2015, nomeadamente a conquista de uma quase-maioria parlamentar, mas o facto de este sucesso eleitoral, apesar da vontade daqueles que levou para o governo, ter intensificado o ciclo de conflito que começou em 2010.
É o referendo de Julho de 2015 que é o momento da verdade da sequência de cinco anos que começou em Maio de 2010. O verdadeiro legado do movimento das praças, precisamente porque tal resultado não estava de modo algum predeterminado mas constituiu-se como a síntese em ação das contradições do período, foi o extraordinário comício de 3 de Julho de 2015 na Praça Syntagma e o OXI (NÃO) de 61,3% no referendo de 5 de Julho.
Este NÃO que causou espanto mundial foi invertido, como sabemos, alguns dias mais tarde e tornou-se um SIM nas mãos daqueles que assumiram a tarefa de gerir o que, aos seus olhos, era apenas um fardo insustentável. Com a assinatura de Alexis Tsipras de um 3º Memorando na noite de 13 de Julho de 2015, a Grécia deixou abruptamente de ser um ponto de referência de esperança para se tornar sinónimo de um trauma que a esquerda grega e internacional está longe de ter superado. Por mais difícil que esta experiência tenha sido, na verdade não foi perdida para toda a gente. Ou, pelo menos, cabe-nos vê-la de forma diferente.
É precisamente por termos vivido a experiência de um movimento de massas de tal magnitude que sabemos que, só por si, ele não pode dar respostas aos problemas que coloca. Ficámos a conhecer o papel necessário e, em última análise, decisivo da política. Mas também ficámos a saber que qualquer proposta política que se apresente como “esquerda” mas que teimosamente se recusa a dotar-se dos meios para um desfecho vitorioso, e até renuncia à sua mais elementar autodefesa, não merece a menor indulgência.
Este texto é uma versão editada de uma intervenção na reunião pública organizada pelos colectivos activistas Anametrissi [Confronto] – grupo de comunistas e Synantissi [Reunião] para uma esquerda anti-capitalista e internacionalista em 17 de Julho de 2021 em Atenas sobre o tema “Dez anos após o movimento das praças, ainda há espaço para a esperança radical?
Notas:
- O (primeiro) Memorando foi um acordo assinado em Abril de 2010 entre a Grécia e os seus credores, representados pela Troika (União Europeia, Banco Central Europeu e FMI), que previa o refinanciamento da dívida pública grega em troca de um pacote de medidas articuladas em torno do tríptico habitual da terapia de choque neoliberal: austeridade-desregulação-privatização. O desembolso dos empréstimos foi sujeito à aprovação dos emissários da Troika cujos relatórios trimestrais forneceram um acompanhamento detalhado das “reformas” previstas pelo Memorando. O primeiro Memorando foi seguido de dois outros, idênticos em conteúdo, sendo o terceiro o assinado por Alexis Tsipras em Julho de 2015.
- A excepção é a Tunísia, onde a revolta levou não só ao derrube do regime mas também a uma nova ordem constitucional e a uma verdadeira democratização a nível institucional. No entanto, a ausência de qualquer mudança social e a deterioração das condições de vida da maioria da população estão a alimentar uma crise política crónica, que mina os ganhos da revolução de 2011.
- Stathis Kouvélakis, “Η ώρα της κρίσης. Εξι θέσεις για την εξέγερση” [The Moment of Crisis. Six Theses on Insurgency], Δρόμος της Αριστεράς, 13 de Junho de 2011, disponível aqui.
- Antonio Gramsci, “Observações sobre alguns aspectos da estrutura dos partidos políticos em períodos de crise orgânica”, Caderno 13, §23, em Antonio Gramsci, Cadernos da Prisão. Cadernos 10, 11, 12 e 13, Paris, Gallimard, 1978, pp. 399-409 – também disponíveis aqui. O texto italiano está disponível aqui.
- Este período, a que os gregos chamam Metapolitfesi, seguiu-se à queda da ditadura dos coronéis (Abril de 1967-1974). Foi marcado por uma democratização que desmantelou o Estado autoritário que existia desde a guerra civil (1946-1949) e por certos avanços sociais, que foram completados entre 1981 e 1985, durante o primeiro mandato do governo PASOK [o Partido Socialista Grego, fundado em 1974].
- Durante as três décadas 1981-2011, o sistema partidário grego caracterizou-se por uma estabilidade notável, estruturada pela alternância no poder de dois grandes partidos, o PASOK e a Nova Democracia (direita), com pelo menos 80% dos votos e centenas de milhares de membros.
- O movimento sindical grego está organizado em torno de duas confederações únicas (GSEE e ADEDY) cobrindo respectivamente o setor privado e a função pública. A maioria dos partidos políticos tem uma frente sindical que lhes está diretamente subordinada mas que opera no quadro confederal. Desde o início dos anos 80, o PASOK controlava ambas as confederações, assim como as principais federações, cuja liderança se caracterizava por um nível e estilo de burocratização, muitas vezes próximos da corrupção, reminiscente do dos “padrinhos sindicais” argentinos ou americanos. As forças de esquerda radicais (com exceção do Partido Comunista, que se manteve afastado do movimento das praças, mas participou nas greves) estavam em forte minoria a nível federal e confederal e formaram uma “coordenação dos sindicatos de base” que foi particularmente ativa durante o movimento da praça e, de um modo mais geral, ao longo do ciclo de mobilização 2010-2012.
- Sobre o papel dos movimentos operários e sindicais nestes três países, cf. para a Tunísia, Najet Mizouni, “L’UGTT, moteur de la révolution tunisienne”, Tumultes, n° 38-39, 2012, p. 71-91 e Hela Yousfi, “L’UGTT et l’UTICA, entre conflit ouvert et union sacrée”, L’année du Maghreb, n° 16, 2017, pp. 379-394; sobre o Egipto cf. Anne Alexander e Mostafa Bassiouny, Bread, Freedom, Social Justice: Workers and the Egyptian Revolution, Londres, Zed Books, 2014; sobre Espanha cf. Josep Maria Antentas, “Spain: the Indignados rebellion of 2011 in perspective”, Labor History, vol. 56, no. 2, 2015, pp. 136-160.
- Ver Angelos Kontogiannis-Mandros, ‘Reshaping Political Cultures’. The ‘Squares Movement and Its Impact’, em Panagiotis Sotiris (ed.), Crisis, Movement, Strategy. The Greek Experience, Leiden, Brill, 2018, p. 165. Os números são provenientes dos inquéritos do Public Issue Institute, acessíveis aqui.
- Sobre esta sequência, ver o nosso texto “Grécia: golpe de Estado europeu face à revolta popular”, Contretemps, 15/11/2011, acessível aqui.
- Lenine, La maladie infantile du communisme, le «gauchisme» (1920), uvres, Paris-Moscovo, Editions sociales/ Editions du progrès, t. 31, p. 85, acessível aqui.
- Ibid.
- Nas primeiras semanas do movimento de ocupação das praças, 41% dos seus participantes não se posicionavam no eixo esquerda-direita, enquanto 16% se identificavam com a direita ou centro-direita e 27% com a esquerda ou centro-esquerda. Ver Angelos Kontogiannis-Mandros, ‘Reshaping Political Cultures…’, op. cit., p. 166.
- Cf. Alain Badiou, Un parcours grec, Paris, Lignes, 2016. Para uma recente reformulação cf. o seu texto “A propos de la conjoncture actuelle”, 2/12/2020, disponível no site Quartier général.
- Sobre este aspeto, cf. a análise de Loukia Kotronaki, «Les mobilisations des Indignés: politique du conflit et politique conventionnelle aux années du Mémorandum en Grèce(link is external)», Pôle Sud(link is external), n° 38, 2013, p. 53-50, disponível aqui.
- Para uma síntese cf. Christos Giovanopoulos, “La Grèce après l’espoir: en attendant le possible. Réflexions sur le mouvement des solidarités locales”, Vacarme, vol. 83, no. 2, 2018, pp. 99-108 disponível aqui.
- Sobre o caso espanhol, cf. a análise de Josep Maria Antentas, “Spain: the Indignados rebellion…” , art. cit., p. 19. Sobre os Coletes Amarelos, cf. as observações de Laurent Denave na sua recente obra consagrada ao movimento (o qual viveu por dentro): “Para mudar a ordem estabelecida, não basta derrubar o poder, é preciso uma organização pronta para substituí-lo e instaurar um novo regime. (…) Por fim, quer se opte pela via eleitoral ou pela via insurrecional, impõe-se a necessidade de se organizar. Organizações já existem, mas debatem-se para obter o apoio dos Coletes Amarelos, muitos ainda muito relutantes a qualquer forma de organização ou representação”, S’engager dans la guerre des classes, Paris, Raisons d’agir, 2021, p. 122.
- Cf. Stathis Kouvélakis: La Grèce, Syriza et l’Europe néolibérale, entretiens avec Alexis Cukier, Paris, La Dispute, 2015 ; “Montée et chute de Syriza”, version française, Le Grand soir, 6 juillet 2016, disponible ici. 1re publication, New Left Review, n° 97, janeiro-fevereiro 2016, disponível aqui.