Por Nancy Fraser, 25 de Setembro, 2021
Estou empenhada em expandir a nossa compreensão do capitalismo de modo a incluir género, ecologia, raça e império. E isso requer trazer as partes que foram negligenciadas da história para o interior das nossas periodizações.
Reformismo
O protagonista do livro Capitalismo em debate – uma conversa em teoria crítica(link is external) (Boitempo, 2020) que escrevi em co-autoria com Rahel Jaeggi é o capitalismo. O nosso objetivo é reviver a teorização social de “grande escala” ou englobante. Na verdade, esse não é um interesse novo para mim. A minha visão do mundo foi formada na Nova Esquerda, há muito tempo atrás; quando entrei na academia, trouxe comigo a firme convicção de que o capitalismo era a categoria principal ou o conceito de enquadramento para toda a teorização social séria.
Mas, à medida que as décadas passavam e o etos da Nova Esquerda se desvanecia, comecei a perceber que nem todos compartilhavam dessa suposição. Em vez disso, a posição padrão, pelo menos nos Estados Unidos, era (e ainda é) o liberalismo de um tipo ou de outro, seja igualitário de esquerda ou individualista libertário. Quando essa compreensão ocorreu, vi que a minha experiência formativa na Nova Esquerda tinha sido uma aberração, assim como os anos 1930 o foram para uma geração anterior de radicais norte-americanos.
Foram períodos em que a fraqueza estrutural de todo o sistema social se tornou amplamente aparente, levando muitas pessoas a radicalizar o seu pensamento, a investigar as raízes profundas dos problemas sociais e a identificar as mudanças estruturais necessárias para superá-los. Mas esses períodos foram excepcionais. Em tempos “normais”, quase todos os americanos, incluindo aqueles que se inclinaram para a esquerda, ficaram focados em reformar o sistema, procurando expandir direitos e oportunidades dentro dele.
Deixem-me ser clara: não me oponho a todos esses esforços; pode haver boas razões táticas para procurar certo tipo de reformas em situações historicamente específicas. Mas quando o reformismo se torna a perspectiva padrão tomada como correta, o efeito é desviar a atenção das estruturas fundamentais da totalidade social. E isso está fadado a ser política e intelectualmente incapacitante no longo prazo – principalmente em tempos de crise aguda, como presentemente.
De qualquer forma, chegou a uma altura em que me apercebi da ciência do problema: o interesse pela crítica estrutural da totalidade social estava a diminuir nos círculos progressistas. Em resposta, fiz um conjunto de intervenções destinadas a expor a amnésia da economia política – mostrando como esta tinha ficado fora da crítica feminista e antirracista, da Teoria Crítica em todos os sentidos, assim como de todas as formas de pensamento igualitário.
Também argumentei que um foco unilateral em questões de reconhecimento ou política de identidade se encaixava no processo de neoliberalização então em andamento e o fortalecia. Passei, assim, do pensamento bem óbvio de que o capitalismo era a questão central na teorização crítica para a compreensão de que essa tese tinha de ser discutida. Com o objetivo de enfrentar a questão diretamente, comecei a tentar convencer os meus leitores a redirecionar a sua atenção para o capitalismo. Essa agenda foi posta em destaque no livro.
O livro também é uma tentativa de integrar os melhores insights do marxismo com os da teoria feminista e da LGBTQ, a teoria anti-imperialista e crítica do racismo, a teoria democrática e ecológica – resumindo tudo o que aprendemos desde os anos 1960. A meu ver, este processo não consiste em adicionar novas variáveis ou “sistemas” aos paradigmas marxistas existentes. Em vez disso, requer revisitar o conceito de capitalismo e pensá-lo de forma diferente.
Capitalismo
Muitas pessoas pensam que o capitalismo é simplesmente um sistema económico. Essa é a visão dos economistas tradicionais e dirigentes das empresas. É também o senso comum da maioria das chamadas pessoas, incluindo os progressistas e, até mesmo, muitos dos que se autodenominam marxistas. Mas essa visão do capitalismo é muito estreita. Ela obscurece todas as condições básicas necessárias para uma economia capitalista prosperar, coisas das quais ela depende e das quais se apropria livremente, mas que despreza e não consegue recuperar.
Direi quais são essas condições concretamente num minuto. Mas quero dizer algo primeiro: tudo o que constitui numa pressuposição necessária para a economia capitalista precisa figurar diretamente na nossa definição do que é o capitalismo. Longe de ser uma mera “economia”, o capitalismo é algo maior, uma “ordem social institucionalizada” no mesmo nível de que o foi, por exemplo, o feudalismo. Assim como o feudalismo não era simplesmente um sistema económico, nem um sistema militar, nem um sistema político, mas uma ordem social ampla que abrangia tudo isso, o mesmo é verdade para o capitalismo. É uma forma de organização, não apenas da produção e troca económicas, mas da relação da produção e da troca com uma ampla gama de relações, atividades e processos sociais, tidos como não económicos, que tornam a economia possível. No livro, descrevo quatro dessas condições de fundo não económicas sem as quais uma economia capitalista não poderia existir.
A primeira é a reprodução social – ou, como muitos agora o chamam, o “cuidado” (carework). Incluem-se aqui todas as atividades que criam, socializam, nutrem, sustentam e reabastecem os seres humanos que ocupam cargos na economia. Não se pode ter uma economia capitalista sem “trabalhadores” que produzem mercadorias sob a égide de empresas com fins lucrativos. E não se pode tê-los sem os “cuidadores” que reproduzem seres humanos em ambientes externos à economia oficial. O cuidado inclui a gestação, o parto, a amamentação, a alimentação, o banho, a socialização, a educação, a cura, a proteção, o consolo – em suma, tudo o que é essencial para sustentar seres que são ao mesmo tempo biológicos e sociais.
Historicamente, muito desse trabalho não era pago, pois era realizado por mulheres – frequentemente em famílias, mas também em comunidades, bairros e vilas; em associações da sociedade civil, agências do setor público e, cada vez mais atualmente, em empresas com fins lucrativos, como escolas e lares de idosos. Mas, onde quer que seja feita, a reprodução social é uma pré-condição indispensável para a produção económica – portanto, para a obtenção de lucro e a acumulação de capital.
No entanto, o capital não mede esforços para evitar o pagamento desse serviço – e, quando não pode fazê-lo, esforça-se para pagar o mínimo possível por ele. E isso tem de ser tomado como um problema. Como as sociedades capitalistas incentivam os negócios a se aproveitarem da assistência médica sem a obrigação de financiá-la, elas consolidam uma tendência profunda à crise sócio-reprodutiva, bem como uma ordenação de género que subordina as mulheres.
Uma segunda pré-condição para a economia capitalista prosperar é ecológica. Assim como uma economia capitalista depende dos serviços assistenciais, depende também da disponibilidade de energia para alimentar a produção e dos substratos materiais, incluindo as “matérias-primas” para a indústria de transformação. O capital depende, em suma, da “natureza” – primeiro, das substâncias específicas apropriadas diretamente pela produção; e, segundo, das condições ambientais gerais, tais como ar respirável, água potável, solo fértil, níveis do mar relativamente estáveis, um clima habitável e assim por diante.
Mas aí se encontra o problema. Pela sua própria concepção, a sociedade capitalista incentiva os proprietários a tratar a natureza como um tesouro “não económico” inesgotável, disponível para ser apropriado infinitamente, sem necessidade de reposição ou reparo, na suposição de que ele se autorregenera. Ora, isso é uma receita para o desastre que, talvez, agora finalmente compreendemos. As sociedades capitalistas institucionalizam uma tendência estrutural à crise ecológica – bem como aprofundam as vulnerabilidades da natureza que provêm da sua ação.
Essas disparidades apontam para uma terceira condição necessária para a acumulação de capital: a riqueza confiscada das populações subjugadas. Quase sempre dominadas racialmente, essas populações são destinadas à expropriação – e não à exploração. Privadas da proteção estatal e de direitos ativáveis, as suas terras e trabalho podem ser tomados sem remuneração para serem canalizados para os circuitos de acumulação. A expropriação é muitas vezes vista como uma forma antiga e que foi substituída por uma de um sistema que acumula riqueza mediante a exploração (gratuita) de “trabalhadores” nas fábricas. Mas isso é um erro.
A produção capitalista não seria lucrativa sem um fluxo contínuo de insumos baratos, incluindo recursos naturais e trabalho não livre ou dependente, confiscados de populações sujeitas à conquista, escravidão, troca desigual, encarceramento ou dívida predatória e, portanto, incapaz de contra-atacar. Lembrem-se: atrás de Manchester ficava o Mississippi, ou seja, era o trabalho escravo que fornecia algodão cru barato e que alimentava as icónicas fábricas de têxteis no início da industrialização. Mas o mesmo é verdade hoje: atrás de Cupertino fica Kinshasa, onde o “coltan” para iPhones é extraído de forma barata, às vezes por crianças congolesas escravizadas.
Na verdade, a sociedade capitalista é necessariamente imperialista. Ela cria continuamente populações indefesas para a expropriação. A sua economia não funciona se todos recebem salários que cobrem os seus verdadeiros custos de reprodução. Ela não funciona sem uma linha de cor que divide globalmente as populações entre aquelas que são “meramente” exploráveis daquelas que são totalmente expropriadas. Ao institucionalizar essa divisão, o capitalismo também fortalece a opressão racial-imperial e as lutas políticas que a cercam.
Isso sugere uma quarta condição de fundo para a subsistência da economia capitalista: o poder público – paradigmaticamente, mas não apenas, o poder do Estado. A acumulação não pode prosseguir sem a atuação desse poder no seu núcleo histórico: sem sistemas jurídicos que garantam a propriedade privada e as trocas contratuais. Também são essenciais as forças repressivas que administram a dissidência, acabam com as rebeliões e reforçam as hierarquias de status que permitem às grandes empresas expropriar populações dominadas racialmente em casa e no exterior.
E o sistema também não pode funcionar sem regulamentações e os bens públicos, incluindo as infraestruturas de vários tipos e da oferta monetária estável. Estes recursos são indispensáveis para a acumulação; contudo, eles não podem ser fornecidos pelo mercado. Em vez disso, eles só podem ser garantidos pelo exercício do poder público. O capital precisa, portanto, desse poder; mas também está preparado para miná-lo – sonegando os impostos, enfraquecendo as regulamentações, terceirizando as operações ou capturando agências públicas. O resultado disso tudo é um conjunto de tensões embutidas entre “o económico” e “o político” – e esta é uma tendência profundamente arraigada da crise política.
Em todos os quatro casos, as sociedades capitalistas instituem relações contraditórias entre os seus sistemas económicos e as condições não económicas necessárias para que subsistam. Essas relações tornam-se visíveis apenas quando entendemos o capitalismo de forma ampla – não como um “mero” sistema económico, mas como uma ordem social institucionalizada que também inclui reprodução social, natureza, riqueza expropriada de populações subalternas e poder público – todos os quais são essenciais para acumulação, mas, ao mesmo tempo, são predados, desestabilizados e esgotados por ela.
Esse é o ponto principal do livro Capitalismo em debate – uma conversa em teoria crítica(link is external): substituir a definição estreita de capitalismo como um sistema económico por uma visão ampliada deste. Esta abordagem amplia a nossa visão das contradições do capitalismo e, portanto, explica por que as sociedades capitalistas são propriamente – e não acidentalmente – propensas a crises sistémicas – algumas das quais parecem ser “não económicas”. Ele procura também integrar o velho interesse dos socialistas na exploração com as preocupações das feministas, ambientalistas, antirracistas, anti-imperialistas e democratas radicais.
As falhas do sistema
As tensões estão fadadas a surgir em qualquer forma de sociedade capitalista – não importa exatamente como se encontram disjuntas a produção da reprodução social, a economia da política, a sociedade da natureza, a exploração do trabalho expropriado. Essas disjunções representam as falhas do sistema, as juntas que registam suas contradições, as quais se acirram à medida que o capital desestabiliza as suas próprias condições de possibilidade. O capital está disposto, como disse, a canibalizar a assistência social, a natureza, o poder público, a riqueza das populações dominadas racialmente – e assim, periodicamente, passa a ameaçar o bem-estar de quase todas as pessoas que não são proprietários. Não importa o quão bem um determinado regime de acumulação consiga refinar essas contradições por um tempo, ele nunca poderá dominá-las totalmente. Eventualmente, elas ressurgem e o regime começa a desintegrar-se.
O que se segue é um interregno, um período de incerteza entre regimes sociais e políticos, quando todas as irracionalidades e injustiças do sistema surgem à vista de todos. Em tais momentos – e houve apenas um punhado deles na história de mais de 500 anos do capitalismo –, o que emerge não é “apenas” uma crise setorial, mas uma crise completa de toda a ordem social, que abala o senso comum reinante. E isso abre a porta para um espaço público muito mais selvagem, onde atores sociais recentemente radicalizados apresentam uma ampla gama de ideias concorrentes sobre o que deve substituí-lo. Visando construir uma contra-hegemonia, eles lutam para montar um novo bloco histórico com peso suficiente para reorganizar a sociedade capitalista – não apenas reestruturando a economia, mas também refazendo as relações desta com as suas condições “não económicas” que o tornam possível.
O resultado em cada uma dessas situações até o momento tem sido uma nova forma de capitalismo, que supera, pelo menos por um tempo, as contradições geradas pelo regime anterior, até que o mais recente gere, também, as suas próprias contradições, cedendo então espaço para o próximo. Este é o padrão de desenvolvimento capitalista até hoje: uma sucessão de regimes, pontuada por crises de desenvolvimento.
Assim, podemos distinguir entre a “política normal”, quando uma massa crítica de pessoas aceita os termos da ordem social como dados e luta para melhorar a sua posição dentro dela – e a política “anormal”, quando toda a ordem parece instável e é posta em questão. As últimas situações representam episódios libertadores raros – e relativamente enfáticos –, quando podemos contemplar a mudança das regras do jogo.
Sou especialmente influenciada por O longo século XX (Contraponto/Unesp) de Giovanni Arrighi, assim como pela Escola da regulação francesa. Concordo com a sua ordem sucessiva de regimes: capitalismo mercantilista ou comercial; capitalismo laissez-faire ou liberal-colonial; capitalismo organizado pelo Estado ou social-democrata; capitalismo neoliberal ou financeirizado.
Mas concebo esses regimes de forma diferente. Aqueles pensadores enfocaram as relações entre Estados e mercados, mostrando como uma dada divisão entre eles tornou-se contestada e, depois, revista. Isso é importante, com certeza. Mas é apenas um dos vários enredos de uma história maior. As mudanças de regime compreendem mais do que mudanças nas relações entre economia e política; também mudam a relação da produção com a reprodução, da economia com a natureza, da exploração com a expropriação. Essas outras vertentes foram negligenciadas na maioria das periodizações anteriores. Mas são centrais na compreensão que defendo. Como disse, estou empenhada em expandir a nossa compreensão do capitalismo de modo a incluir género, ecologia, raça e império. E isso requer trazer as partes que foram negligenciadas da história para o interior das nossas periodizações.