Face aos acontecimentos da praça Maidan em 2014, a esquerda ucraniana dividiu-se entre a participação nestes protestos e nos contra-protestos. Com a tensão a aumentar no país, estes campos ficaram cada vez mais desencontrados no meio de uma tragédia em que eram atores secundários.
O relatório “A esquerda ucraniana durante e depois dos protestos de Maidan”, do sociólogo ucraniano Volodymyr Ishchenko, permite-nos perceber as diferentes posições da esquerda ucraniana durante os protestos da praça Maidan que levaram à queda do presidente Yanukovych e iniciaram um novo ciclo político no país em 2014 e cuja interpretação continua a ser marcante para a explicação do seu quadro político atual.
O académico distingue entre a “velha esquerda” ligada ao regime soviético e uma “nova esquerda” que cortou com essa tradição. Esta fratura, que marcou todo o período pós-queda da URSS, traduziu-se também nas posições face aos acontecimentos do chamado EuroMaidan. Mas não de forma linear. A maior parte da “nova esquerda” apoiou (de formas muito distintas) estes protestos. Mas um dos seus grupos maiores, o Borotba, não o fez. Do outro lado, a maior parte da “velha esquerda” foi contra, com exceção do pequeno partido Esquerda Unida e Camponeses e de forma “mais ambígua” do Partido Socialista da Ucrânia.
Saliente-se que a ideia de apoio ou de oposição a estes protestos é complexa. O apoio de vários grupos de esquerda tinha uma dimensão crítica com vários deles a “alinhar-se com Maidan apenas depois da ameaça de repressão sistémica contra as liberdades políticas” com as leis de 16 de janeiro de 2014. Tal como a oposição do outro lado tem matizes. Se o Partido Comunista da Ucrânia dizia inicialmente ser uma luta entre dois campos oligárquicos, mas acabou por ficar marcado como tendo ficado do lado do partido governamental, o Borotba teve como estratégia inicial criar um “terceiro campo” no conflito.
As críticas de esquerda às mobilizações da Praça Maidan
No caso do PCU, a sua posição é marcada tanto pelo seu historial de aproximação ao Partido das Regiões no poder quanto pela sua rejeição ao acordo de associação com a União Europeia (foi precisamente a mudança de posição em cima da hora sobre a assinatura deste pela parte de Yanukovych que despoletou a revolta). Em alternativa, o partido pretendia uma aliança aduaneira com a Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão.
Porém, a sua posição face ao EuroMaidan não foi de rejeição imediata absoluta. Em dezembro de 2013, o seu líder, Symonenko, dizia que eram reivindicações sociais que estavam a levar as pessoas às ruas e caracterizou-se várias vezes o que estava a acontecer como uma crise interna do sistema oligárquico, afirmando-se que as manifestações tinham essencialmente uma “agenda socialista”, apesar de estarem a ser exploradas pela direita. A atitude do partido foi mudando à medida em que os protestos continuavam e que surgiam notícias de declarações de apoio dos EUA aos manifestantes, se revelavam tendências anti-comunistas e a presença da extrema-direita entre eles. Assim, acabou por votar a favor das leis repressivas de 16 de janeiro que, na verdade, deram um novo fôlego a um movimento que já parecia esmorecer.
Na “velha esquerda”, a posição do Partido Socialista Progressista da Ucrânia foi bem mais exacerbada. Descreviam-se, quase desde início, os protestos como “um golpe nazi apoiado pelos EUA em apoio a uma “eurocolonização” da Ucrânia”.
Já o Borotba era, ao mesmo tempo, crítico da integração económica com a Europa e com a Rússia. Quando os protestos na praça Maidan começaram não os apoiou, defendendo que seria uma nova versão da Revolução Laranja de 2004 e que os participantes estavam a ser manipulados pelos oligarcas. Também não apoiaram as leis repressivas. E a sua ideia de constituir um terceiro campo permaneceu marginal.
A esquerda no Anti-Maidan
PCU, PSPU e Borotba não foram só críticos de Maidan, foram “uma parte menor mas significativa” do movimento que respondeu a esta mobilização e que ficou conhecido por Anti-Maidan. Uma participação sobretudo pacífica e concentrada em pequenos comícios, maioritariamente no sul e leste do país.
Na maior parte destes protestos iniciais contra Maidan que contaram com a participação da esquerda, o tom era de crítica ao governo mas de maior crítica à União Europeia. Nalguns deles havia “exigências homofóbicas, particularmente contra a ameaça imaginária dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo que alegadamente seriam parte do processo de integração europeia”. E, em parte deles, esta esquerda surgia junta com organizações nacionalistas russas.
O derrube da estátua de Lenine em Kiev e a radicalização dos protestos na praça Maidan foram fazendo com que a “velha esquerda” passasse do foco à crítica ao governo ao foco na crítica aos manifestantes do lado oposto. A participação da esquerda nas mobilizações gerais anti-Maidan continuou a ser um “fenómeno bastante marginal sem impacto político significativo”. Contudo, estes protestos ganharam contornos diferentes dos iniciais, como veremos.
A esquerda que apoiou Maidan
No campo das esquerdas que participaram nos protestos da praça Maidan, a diversidade de posturas foi grande. Uma esquerda “liberal” apoiou Maidan porque “partilhava pelo menos alguns sonhos pró-europeus” nas questões de costumes e de género. Ishchenko critica-lhe a “incapacidade de compreender a centralidade da análise de classe” e “a natureza deste projeto, as suas potenciais consequências para a economia ucraniana e a classe trabalhadora”.
Mas a análise mais pró-europeia até veio de um pequeno partido da “velha esquerda”, o Esquerda Unida e Camponeses, presente desde o primeiro momento nestas mobilizações. Defendia que o espaço comunitário não promoveria a “polarização social selvagem, a ditadura oligárquica” mas os direitos dos trabalhadores e da classe média, uma educação, saúde e segurança social de qualidade. Em declarações posteriores, o partido criticou o movimento por falta de programa sócio-económico e centramento na integração europeia.
Outros militantes de esquerda presentes no protesto apresentavam pontos de vista mais críticos da UE. O sociólogo refere um panfleto distribuído nos primeiros dias das manifestações que salientava que o acordo com este espaço económico provavelmente apenas beneficiaria as grandes empresas e defendendo, em vez disso, enfatizar a democratização, o combate aos abusos policiais e à corrupção, os aumentos de salários, melhorias no Estado Social e nos transportes, entre outras. E uma página de Facebook chamada “auto-organização e protesto sócio-económico no #EuroMaidan” assumiu uma perspetiva crítica semelhante dos resultados da integração na UE, nomeadamente devido ao seu balanço nos países de leste e tentava fazer a ponte do que estava a acontecer com o movimento norte-americano Occupy e as mobilizações anti-austeridade que ocorriam em vários pontos da Europa.
Também várias das organizações presentes tentaram equilibrar as críticas ao acordo de integração europeia com as exigências sociais. A Oposição de Esquerda, que divulgou um programa de dez pontos (que incluía nacionalizações, progressividade nos impostos, combate aos offshores etc.) no âmbito dos protestos, dizia apoiar a “parte política” deste acordo que promoveria uma democratização e transparência e, ao mesmo tempo, opor-se à parte económica que constituiria uma “integração dos nossos oligarcas no sistema económico da UE que apenas aumentará a situação periférica e neocolonial da economia ucraniana”. O Partido Socialista da Ucrânia dizia o mesmo sobre a parte política, exigindo mais negociação sobre os aspetos económicos.
Para o investigador, entre as motivações para a esquerda participar nos protestos constavam ainda a atração por um movimento espontâneo, auto-organizado e radical de base ou a vontade de, com esta presença, chegar às massas. O dilema identificado por esta esquerda era assim o seguinte: “ou participar no protesto, apesar de todos os seus problemas, da agenda estranha a si e da atitude hostil face à esquerda ou ficar à margem de um dos mais importantes acontecimentos políticos do país e perder a oportunidade de ganhar uma experiência valiosa”.
A equação mudou depois das já referidas leis de 16 de janeiro, com o protesto a focar-se cada vez mais na violência policial e nos ataques do governo às liberdades políticas. A radicalização subsequente do movimento fez UEC e PSU retraírem-se, distanciando-se e avisando contra a possibilidade de guerra civil mas, pelo contrário, fez com que vários outros grupos da “nova esquerda” aderissem mais aos protestos. O movimento estudantil Ação Direta apelou então à participação em todos os tipos de protestos e o Sindicato Autónomo dos Trabalhadores passou a apoiar as mobilizações quando antes classificava o que se estava a passar como um embate entre duas formas de fascismo. A Ação Direta tinha já estado envolvida em desfiles e comícios estudantis neste âmbito mas sem grande sucesso. Em reação às leis repressivas, desencadeou uma tentativa de greve com a ocupação da Universidade KMA, que redundou numa assembleia que decidiu a invasão do ministério da Educação nos dias finais do movimento.
No resto do país, a participação era ainda mais difícil do que em Kiev. Exceção foi Kharkov, onde a extrema-direita era mais fraca e os anarquistas da AWU conseguiram ter algum sucesso na divulgação da sua agenda e onde pertenceram ao conselho de coordenação local dos protestos. A Resistência Autónoma, movimento nacionalista de esquerda que tinha tido origens na extrema-direita, também obteve um sucesso relativo em Lviv em confronto direto com o partido Svoboda (de extrema-direita), liderando também a ocupação do edifício da administração regional, dominada pelo Partido das Regiões.
Para além disso, refira-se que a esquerda foi alvo de vários ataques por parte da extrema-direita no interior do protesto. Os anarquistas tentaram organizar-se no interior dos grupos de auto-defesa de Maidan, criando uma unidade própria, mas acabaram por ser expulsos pela extrema-direita.
Ishchenko caracteriza genericamente a participação da esquerda em Maidan como “esporádica e caótica, sem coordenação entre grupos diferentes, por vezes assumindo até a forma de mera participação individual”, fruto da sua fraqueza, falta de estruturas organizacionais fortes e das suas divisões internas. Comparativamente, a extrema-direita tinha à partida muito mais ativistas organizados, meios de comunicação social e infraestrutura.
A esquerda foi portanto incapaz de influenciar o curso dos acontecimentos e de marcar a sua agenda e praticamente invisível em termos mediáticos. A sua expressão eleitoral também não melhorou: nas eleições locais de maio de 2014 em Kiev a Oposição de Esquerda teve um resultado muito baixo.
Apesar disto, marcou-se presença no trabalho feminista em Maidan, organizaram-se atividades educacionais, culturais e de auxílio. E alguns dos grupos conseguiram criar laços com vários tipos de associações e ativistas. Pouco ganhos num acontecimento desta dimensão. Noutra correlação de forças, sendo um pouco mais forte e estando mais dentro da direção dos protestos, também as tentativas de puxar os movimentos anti-Maidan para a esquerda redundaram em falhanço.
Depois de Maidan
No rescaldo do movimento, a Esquerda Unida e Camponeses (que regressou ao nome antigo de Partido da Justiça) recomendou o voto no oligarca Petro Poroshenko que acabou por se tornar presidente, isto apesar de continuar a criticar o governo a partir de um ponto de vista social-democrata.
A maior parte das organizações da “nova esquerda” foram bastante críticas do governo pós-EuroMaidan. Não acreditavam nessa “revolução” anunciada pelas novas autoridades mas ainda esperavam dela, em certa medida, a possibilidade de uma democratização, com alguns a caracterizarem o processo como uma “revolução burguesa”.
Por seu turno, depois da queda do governo, o movimento Anti-Maidan ganhou “uma dinâmica de bases”, completamente diferente do que tinha sido anteriormente (sobretudo “um movimento vertical organizado pelo Partido das Regiões”) e passou a contestar o novo governo como sendo neoliberal e nacionalista. Pelo contrário, parte da “nova esquerda” continuou a olhar para estes protestos como um “motim reacionário” fortemente manipulado pela Rússia e pela elite de Donbass do Partido das Regiões.
A emergência da revolta em Donbass, liderada por militares e ex-polícias e na qual a extrema-direita nacionalista russa detinha posições de liderança, parecia-lhes uma forma de fascismo. Da mesma forma, o lado anti-Maidan rotulava exageradamente o governo que assumiu o poder depois da fuga de Viktor Ianukovytch como “uma junta fascista”. As distâncias entre estas duas esquerdas pareciam então inultrapassáveis. Um clima que seguia o extremar de posições depois do massacre de snipers na praça Maidan em fevereiro e da anexação da Crimeia no final do mesmo mês.
Então, o PSPU continuava a ser o movimento mais exaltado: falava num “golpe de Estado nazi”, classificava os participantes nas mobilizações contrárias como “terroristas” a soldo da União Europeia e dos EUA. Indo ao ponto de dizer que o governo pretendia começar um genocídio dos cidadãos ucranianos de etnia russa com armas nucleares. Antes, não criticara o governo de Yanukovych nem a repressão policial.
Já o PCU tomava posições mais ambíguas. Culpou os dois lados pela violência e a 22 de fevereiro votou ao lado do campo pró-Maidan nas medidas que permitiram depor Yanukovych. Só que no dia seguinte, o seu líder, Petro Symonenko, mudou completamente a retórica do partido passando a considerar Maidan um golpe de Estado com apoio ocidental que explorou justas reivindicações populares. E só depois da anexação russa da Crimeia o partido começou a usar “os clichés da junta fascista” nos seus documentos e declarações oficiais.
O sociólogo ucraniano liga estas mudanças com a crescente repressão de que o partido passou a ser alvo e que incluíram proibições de facto da sua atividade em várias regiões ocidentais, ataques aos monumentos do período soviético, um assalto à sede do partido em Kiev e a apresentação de um esboço de decreto parlamentar que sugeria a sua anulação como partido. Também as liga ao mimetismo da propaganda russa que legitimou a anexação da Crimeia com essa ideia do “golpe fascista”.
Ishchenko considera que esta análise era “não apenas uma representação imprecisa da realidade, explorando analogias históricas muito frouxas com a década de 1930, exagerando a natureza do regime como sendo de extrema-direita (…) negligenciando a agenda neoliberal e não social-populista do governo ucraniano (…) mas também tinha implicações políticas prejudiciais implicando um apoio acrítico ao Anti-Maidan e justificando mesmo o uso da luta armada”.
Apesar de tudo isto, o PCU decidiu participar nas eleições presidenciais marcadas depois do abandono do cargo pelo presidente anterior. Petro Symonenko apenas saiu da corrida em meados de maio, alegando que, naquele clima, não eram possíveis eleições livres e justas.
PCU e PSPU nunca mencionavam a forte participação de nacionalistas russos no movimento Anti-Maidan e escusavam-se a fazer qualquer crítica ao governo russo. Ainda assim, abstinham-se de apoiar oficialmente as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk.
Para o analista, a posição do PCU explica-se porque a sua liderança “não quis arriscar transformar” o seu “poder de reserva em apoio total à revolta separatista”. Antes da revolta, o PCU era o segundo partido mais votado no sudeste da Ucrânia com votações entre os 18.9% em Donetsk e os 29.5% na cidade de Sevastopol. Tinha assim bastantes eleitos locais e muitos dos seus dirigentes e eleitos nessas zonas estiveram diretamente envolvidos na organização dos referendos separatistas, deram apoio às suas milícias ou tornaram-se membros dos parlamentos separatistas de Lugansk e Donetsk e mesmo dos governos. O partido optou por manter a distância face aos comunistas de Donbass e excluiu quem tivesse feito parte do movimento separatista. Isto redundou num rombo nas regiões onde era mais forte e não apagou a imagem pública que o retratava como sendo pró-russo e um apoio do ex-presidente Viktor Yanukovych.
O Borotba, na fase final da revolta de Maidan, também se distanciava dos dois lados. A 25 de fevereiro cria o Centro de Resistência Anti-Fascista que pretendia lutar contra o novo governo e contra a extrema-direita. Em vários dos seus escritos surge depois igualmente o termo fascismo para designar o novo governo. Sobre o Anti-Maidan enfatizava-se o aspeto “anti-capitalista” das mobilizações, apesar da participação de elementos anti-capitalistas ser altamente limitada e de apenas existir um sentimento vago anti-oligarquia e queixas sócio-económicas como as do lado oposto aliás. No seu discurso, havia ainda algum espaço para criticar o nacionalismo pró-russo que parte do movimento adotava apesar de menorizarem o seu perigo. Afirmavam igualmente que se opunham à intervenção da Rússia no conflito apesar de “culparem principalmente os nacionalistas ucranianos e o governo de Kiev pela perda da Crimeia.” Depois da instituição das Repúblicas separatistas em Donetsk e Luganks, o grupo apoiou-as mais claramente do que o PCU, considerando-as fruto da “vontade do povo”. Um apoio crítico que partia da ideia que “a experiência de luta de massas antifascista, anti-imperialista e anti-oligarquia irá sem dúvida encaminhar para a esquerda não só a o sudeste da Ucrânia mas todo o espaço pós-soviético”, uma “esperança que continua a provar-se fútil” escreve o investigador.
O Borotba participou em alguns episódios violentos, pelo que foi condenado pelo resto da “nova esquerda” que fustigava também o seu financiamento “não transparente” e o facto de ter colaborado com nacionalistas russos. A disputa com os anarquistas da AWU azedou ainda mais com estes a publicarem vários panfletos altamente acusatórios.
O grupo permaneceu pequeno mas “aumentou significativamente” a sua visibilidade. O facto de esta estar associada aos separatistas redundou na sua rejeição no resto do país e num aumento da repressão contra os seus membros. A organização acabou por deixar de ter atividade pública e vários dirigentes emigraram.
Apesar de tudo, Ishchenko considera que poderiam ter surgido oportunidades na participação da esquerda no Anti-Maidan dada a sua componente de base, a falta de atitudes anti-comunistas e “patriotismo soviético” que seria anti-neoliberal apesar de “essencialmente conservador e não providenciando um modelo de desenvolvimento social”. Assim, o autor conclui que poderia haver razões políticas tão válidas para aderir a este movimento como ao seu oposto. E que o problema principal do movimento que se opôs a Maidan foi “cegueira explícita, ou a minimização ou justificação do nacionalismo russo e do interesse do governo russo de iniciar e manter o conflito”.