Publicado também na Carta Capital https://www.cartacapital.com.br/opiniao/nuclear-e-o-veu-da-propaganda-enganosa/
Em artigo na Carta Capital, em 23 de fevereiro último – “Que venham as Cassandras!” , eu disse que está esquentando em Recife a discussão sobre a construção de seis usinas nucleares à beira do rio São Francisco https://senospermitemsonhar.wordpress.com/2021/02/23/benvindas-as-cassandras-chico-whitaker/ E de fato eis que, mal passados 14 dias, a mesma Carta Capital publicou um artigo do sr. Carlos Mariz, um dos participantes, por mim citado, dessa discussão: “O Brasil precisa de energia elétrica estável e limpa”. Por respeito aos leitores desta revista, me vejo obrigado a escrever os comentários que se seguem.
O sr. Mariz é vice-presidente da ABEN – Associação Brasileira de Energia Nuclear. Embora seus estatutos não a definam dessa forma, essa entidade é uma espécie de “capítulo brasileiro” da Associação Mundial de Energia Nuclear, sediada em Londres, que reúne os integrantes do poderoso lobby internacional do nuclear. É natural portanto que em seu artigo o sr. Mariz repita o que diz esse lobby: “No mundo, a energia nuclear continua em expansão”. Ele evidentemente seria afastado de suas funções se dissesse o contrário. Mas isto é o que é afirmado por organizações independentes, como a que elabora anualmente um Relatório do Status da Indústria Nuclear Mundial (WNISR, na sigla em inglês), que diz que a indústria nuclear está “em declínio, lento mas continuo”.
Esse Relatório dá informações importantes sobre a transição sustentada, que está ocorrendo, do nuclear para energias alternativas como a eólica e a solar. Por exemplo, a Alemanha – que começou essa transição há menos de dez anos, um pouco depois da catástrofe de Fukushima – já não terá nenhuma usina nuclear em 2022. E mais, ela deverá fechar até 2038 todas as suas usinas que usam carvão, em benefício do eólico e do solar Na França, país mais nuclearizado do mundo, a eletricidade gerada pelo nuclear nos anos 2000 baixou, em 2019, de 80% a 70%, e deverá baixar para 50% em 2034, com o fechamento de 14 reatores. O Japão, reabriu 9 das 54 usinas que tinha antes de Fukushima e tenta convencer a população – majoritariamente contraria – a reabrir outras. Mas já fechou 8 definitivamente, e está também abrindo cada vez mais espaço para o solar e o eólico.
Por isso o pico das 438 (e não 442) usinas em operação no mundo, alcançado em 2002, já se reduziu a 408 em meados de 2020. E o nuclear tem uma participação em visível baixa na produção de eletricidade no mundo. Ela ainda responde por 10% dessa produção (segundo o sr. Mariz, mas mais exatamente 10,35%), quando em 1996 ela respondia por 17,5 %. E em 2019, as eólicas, solares e de biomassa geraram, pela primeira vez, mais eletricidade que o nuclear. Em Gigawatts de eletricidade produzida em 2019, as eólicas forneceram mais 59 GW, as solares mais 98 Gigawatts e as nucleares somente mais 2,4 Gigawatts.
Uma das razões dessa mudança é a elevação do custo das usinas nucleares, em comparação com os da eólica e da solar: 26% a mais no custo do nuclear na última década, enquanto o da eólica diminuiu 70% e o da solar 89%. Por isso mesmo os investimentos em energias renováveis são hoje 10 vezes maiores do que os investimentos no nuclear. Mesmo a China, que ainda constrói novas usinas nucleares, é o país que mais investe nas renováveis: 83 dos 300 bilhões investidos em todo o mundo. Na verdade, o nuclear deixou de ser um bom negócio: está em discussão na Exelon – maior proprietária de usinas nucleares nos EUA, onde esse investimento é privado – a decisão de não construir nenhuma nova usina nuclear no país.
Mas esses números interessam mais aos que tomam decisões sobre a “matriz energética” dos países. Será mais útilir direto ao ponto crucial para a vida das pessoas: os riscos das usinas nucleares. Até porque o Sr. Mariz parece já ter abandonado, em sua argumentação pró nuclear, o mito de que a energia nuclear é “a forma mais barata” de produzir eletricidade; mas continua fiel aos mitos de que é “a forma mais segura” e “a mais limpa”.
Falar desses mitos me obriga a dizer que chamar essas usinas de “nucleares” é mais um embuste, como se a eletricidade nelas produzida se originasse diretamente da energia nuclear. Elas são simples termoelétricas, em que se esquenta água para obter vapor que, sob pressão, faz girar as turbinas que, estas sim, produzem eletricidade. Nas outras termoelétricas, o calor é obtido com a combustão de carvão, diesel ou gás. Nas nucleares o calor é obtido quebrando-se átomos radioativos – como nas bombas atômicas. Por isso deveriam ser chamadas “chaleiras atômicas”, ou mais precisamente “chaleiras radioativas”. É, portanto, só para a modesta função de esquentar água e empurrar o vapor para as turbinas que foram inventados ultra complexos, sofisticados e perigosos sistemas e circuitos, inclusive para que os “reatores nucleares” em que se quebram os átomos não esquentem demais e fundam.
As “usinas nucleares” foram lançadas pelos EEUU em 1953 no programa “Átomos para a Paz”, que visava assegurar a continuidade da pesquisa nuclear quando o mundo começou a se assustar com as centenas de testes de bombas atômicas. Os marqueteiros as chamaram então de “nucleares” e não “atômicas”, para esconder seu parentesco direto com as horríveis bombas genocidas de Hiroshima e Nagasaki.
Dentro da pratica dessas propagandas enganosas, o sr. Mariz também se refere aos dois novos mitos que o lobby nuclear está criando: sobre o papel do nuclear para manter a estabilidade do sistema, dada a intermitência da produção eólica e solar de eletricidade; e sobre a vantagem de os reatores não emitirem gazes de efeito estufa, contribuindo, portanto, para frear o aquecimento global.
Quanto à intermitência do solar e do eólico, o sr. Mariz parece desconhecer os avanços tecnológicos que vêm sendo feitos para estocar energia em quantidade maior do que o fazem nossos celulares ou os carros elétricos, ou como as milhões de motos elétricas usadas na China.
Quanto à emissão de CO2, as usinas em si poderiam contribuir decisivamente, por não o emitirem, para que a Terra não se aqueça acima do limite que permite a Vida. Esquece-se, no entanto, da emissão de CO2 na mineração do uranio e no seu tratamento e depois enriquecimento com as centrifugas, na produção de pastilhas e seu transporte para as usinas, e a própria construção das usinas (e depois, seu desmantelamento), e de tudo que é necessário construir para “esconder” o combustível usado e para levá-lo para tais depósitos.
Mas o Relatório do Status da Indústria Nuclear Mundial, ja citado, é mais decisivo: o aquecimento global exige soluções urgentes e usinas nucleares ficariam prontas tarde demais, porque é demoradissima sua construção. Ainda mais quando surgem problemas de segurança, como nas usinas de 3ª geração em construção na França e na Finlandia – e de corrupção, como nos quase 40 anos da novela de Angra 3. E há as interupções por dificuldades financeiras – são muito caras – alem de absorverem recursos que seriam mais uteis financiando eólicas e solares.
Passando então ao mais importante que é a questão do risco, é nisto que o sr. Mariz mais exagera e falta à verdade, ao afirmar: “A segurança das usinas nucleares é extremamente elevada pelo seu baixíssimo risco de acidentes e é comprovadamente mais segura que todas as outras fontes geradoras de energia elétrica” (perdoemos seus erros de sintaxe).
O despertar para o problema dos riscos do nuclear decorreu de três acidentes com derretimento do reator, considerado impossível até que ocorresse o primeiro, em 1979, em Three Mile Island nos Estados Unidos. Mas vieram outros: em 1986 na União Soviética e em 2011 no Japão, que provocaram catástrofes sociais, ambientais e econômicas. O da União Soviética – Chernobyl – foi também um dos causadores do debacle econômico e político do país. Mesmo o mundo do nuclear não poderia tratar disso como algo sem maior interesse, como o fazem seus propagandistas.
O sr. Mariz acha, contrariamente ao mais elementar bom senso, que há alguma obra humana 100% segura? Os três acidentes acima, chamados “severos”, resultaram de “falhas múltiplas”: combinam-se erros humanos imprevisíveis e falhas de material e equipamento incontroláveis. No caso do acidente no Japão, em Fukushima, houve um erro prévio, de projeto, portanto também humano: a barreira para barrar tsunamis previsíveis tinha altura e consistência insuficientes. O sr. Mariz não se dá conta de que foi a segurança que passou a exigir muito mais prevenção e pressionou os custos do nuclear, o que está levando ao seu abandono como forma de produzir eletricidade?
E quanto às mortes provocadas pelos acidentes? Em toda obra há acidentes. Mas além disso o acidente nuclear é diferente, especialmente naqueles em que reator derrete. Seus efeitos perduram por muito tempo e em territórios muito vastos. Como os interditados à presença humana em Chernobyl e Fukushima.
Não acredito que o sr. Mariz não saiba que não se pode considerar somente os mortos no momento do acidente. Estes até podem ser em número relativamente reduzido, se considerarmos por exemplo só os bombeiros e os mineiros convocados como “liquidadores” do acidente de Chernobyl – sem nem saber os riscos que iriam correr – ou os trabalhadores das usinas que tentaram evitar o pior em Fukushima. Será que o sr. Mariz não sabe realmente, ou ignora, por deformações tecnocráticas ou políticas (”um dia temos todos que morrer”) que a radioatividade pode matar muitos anos depois? Creio que nunca aceitaria os resultados da pesquisa de cientistas bielorrussos e ucranianos, publicada nos Anais de 2009 de Academia de Ciências de Nova York, que estimava em quase um milhão o número de vítimas da nuvem radioativa de Chernobyl que cobriu toda a Europa.
Recebi há pouco alguns dados sobre canceres de tiroide pela contaminação com elementos radioativos no Japão e na Bielo-Rússia: uma previsão de 3.200 canceres fatais desse tipo no Japão e uma informação da Organização Mundial de Saúde, de que foi retirada cirurgicamente a tireoide de 5.000 crianças por canceres devidos ao acidente de Chernobyl. Como o sr. Mariz vai relacionar esses dados com o número de terawatts-hora produzidos, nas estatísticas macabras que usa? Em Chernobyl calcula-se que as malformações decorrentes da destruição de moléculas de DNA pelas radiações podem afetar sete gerações. No relacionamento disso com a produção de eletricidade fica no ar a pergunta: o que interessa ao sr. Mariz: a vida ou os watts?
Será que o sr. Mariz também não se comove com mais de 250.000 mortos pela Covid 19 no Brasil? É o que se conclui diante do fato de seus colegas de propaganda nuclear considerarem suficiente o precaríssimo Plano de Emergência em caso de acidente em Angra. Ignoram o sofrimento dos desalojados por acidentes nucleares – como os mais de 35.000 moradores dos arredores das usinas de Fukushima que hoje, dez anos depois, ainda vivem de seguro-desemprego em alojamentos provisórios. Um deles eu tive a oportunidade de visitar: o número de suicídios era o dobro do número de vitimados pelo tsunami em suas cidades de origem.
Uma tal atitude é a atitude básica dos que constroem e operam usinas, como na Eletronuclear. Não o fosse não insistiriam em retomar a construção de Angra 3 com um projeto perigosamente obsoleto, dos anos 70, anterior ao primeiro acidente “severo” ocorrido no mundo. Seus dirigentes provavelmente fazem parte da Associação Brasileira de Energia Nuclear, assim como da própria Associação Mundial. Esta até me informou, através de um amigo francês que trabalhava no nuclear e buscou dados sobre o caráter obsoleto do projeto de Angra 3, que eu não me preocupasse: o projeto tinha sido devidamente atualizado… Só me pergunto que atualização é essa, já que o edifício de contenção da usina de Angra 3, essencial na segurança para resistir a explosões internas e ataques externos, é o mesmo de Angra 2, com paredes de 60 cm de espessura, quando hoje, depois dos acidentes “severos”, se exige um metro e meio…
Mas tratemos um pouco mais do mito do “modo mais limpo” de produzir eletricidade, a que já comecei a me referir quando falei da emissão de CO2. O problema pior da sujeira do nuclear é o do seu lixo: toneladas de combustível usado se acumulam pelo mundo afora, contendo em sua composição o plutônio, elemento altamente radioativo.
É uma verdadeira dor de cabeça dos defensores do nuclear. Em nenhum lugar do mundo se conseguiu encontrar uma solução. Um só pais, a Finlândia, está conseguindo construir um deposito definitivo para esse lixo, para escondê-lo em seus 70 km de tuneis subterrâneos por 100.000 anos (a mais velha das pirâmides do Egito tem 4.600 anos), ou seja, para a eternidade, como dizem os finlandeses. E só conseguiram começar essa construção em 2004 – ao descobrirem um lugar em que a população não protestou… – prevendo termina-la em 2023.
Ora, o sr. Mariz nos diz candidamente que, quando exauridos, os elementos combustíveis das usinas, “(que não são considerados rejeitos) ficam armazenados e poderão, como em alguns países, ser reprocessados, utilizando técnicas conhecidas e disponíveis”.
O Brasil não tem capacidade financeira para usar essas “técnicas conhecidas e disponíveis” (só a França e a Inglaterra o fazem) nem muito menos para construir tais depósitos definitivos. A solução encontrada pela Eletronuclear foi a adotada nos EEUU – os depósitos de armazenamento provisório a seco – depois que esse país encontrou muitos problemas em sua tentativa de fazer depósitos definitivos, como os que já teve a Alemanha e tem agora a França.
Mas com isso essa empresa decretou o fim da região de Angra (ver https://senospermitemsonhar.wordpress.com/2021/03/14/a-eletronuclear-a-juiza-e-o-fim-de-angra-dos-reis-chico-whitaker/ ) que, em um dia de devaneios, o pior dos Presidentes que jamais tivemos imaginou que poderia se tornar a Cancun brasileira. Mas ao mesmo tempo autorizou a Eletronuclear a implantar tais depósitos (comprados prontos nos EEUU) na praia de Itaorna – pedra podre, na língua dos indígenas locais – em que estão as usinas nucleares.
Eles ficarão perigosamente por lá pelo menos meio milhão de anos, se somarmos todas as “meias vidas” de radioatividade do plutônio. Que só interessa aos nossos militares, em seu sonho de ter a “bomba atômica brasileira”, para a qual ele é o melhor combustível.
Os moradores da região – indígenas, quilombolas, caiçaras e muitos outros – foram levemente consultados em duas mal divulgadas audiências públicas – ignorando-se os turistas que vêm ao seu lindo litoral e os milionários que nela construíram suas paradisíacas mansões.
Mas tecnocratas não perguntam. Eles executam, prometendo contrapartidas que mal cumprem, como já fizeram para implantar dois “monstros adormecidos” em Angra, ou fazendo falsas promessas frente à resistência, como agora em Pernambuco, dos que sabem o que vão sofrer de fato com a desgraceira da grande obra de seis “chaleiras radioativas”.
Mas é grande o poder de empresas como a Eletronuclear e seus braços são longos: montaram uma operação para calar o Ministério Público Federal, que tinha iniciado uma Ação Civil Pública para que a questão fosse melhor avaliada (não é a primeira vez: em 2010 fizeram o mesmo com outro Procurador do MP, que ousou colocar em dúvida a adequação do projeto de Angra 3 às regras de segurança pós Three Miles Island); conseguiram convencer uma Juíza federal de que o esgotamento do espaço disponível nas piscinas, onde é mantido refrigerado o combustível usado das usinas, levará à sua parada, sem nem considerar alternativas de maior segurança apresentadas na Audiência Pública; e fizeram o Ibama, já desestruturado e domesticado pelo atual desgoverno, providenciar o licenciamento da obra.
Sem dúvida há uma boa pitada de cinismo numa das frases finais do artigo do sr. Mariz, ainda que pareça que não distingue bem os verbos “combater” e “manter”: “Combater e manter uma atitude negacionista frente à energia nuclear é, em última análise, combater a vida!”
Chico Whitaker 16/03/2021
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