O Brasil registrou na Sexta-feira Santa, 70 238 novos casos de covid e 2.922 novas mortes. Foi o recorde diário de novos casos, que ocorreu após vários dias com o número de mortes variando entre 3 e 4 mil óbitos e grande parte dos governadores e muitos prefeitos adotandomedidas de distanciamento social aproveitando os feriados da Semana Santa. Este foi o esforço mais importante de restrição da mobilidade em quase um ano – esforço que já produziu um ligeiro declinio na média móvel das mortes. Mas sabemos que novos casos repercutem em mortes três a quatro semanas depois, caso haja leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) disponíveis – e menos tempo e mais mortes caso eles não estejam disponíveis. Ao longo desta semana, o recorde do número de mortes diárias vinha sendo sucessivamente quebrado e no sábado, 3 de abril, o país já ultrapassava 330 mil óbitos. As perspectivas para as próximas semanas não são, pois, promissoras, com o governo bloqueando uma política de garantia de renda e várias autoridades subnacionais sucumbindo às pressões dos comerciantes e já sinalizando a reabertura dos negócios.
Ao mesmo tempo, já tomaram a primeira dose da vacina 19,2 milhões de pessoas, o que representa 9% da população do país. O desenvolvimento de vacinas eficazes foi uma façanha das tecnologias médicas, impulsionada pelo dinheiro e pelo poder. Mas seus benefícios vêm sendo fortemente concentrados, com importantes componentes geopolíticos – dos quais a China e a Rússia também vem se beneficiando. Mas mesmo os países da União Europeia ainda não conseguiram decolar campanhas massivas de vacinação e têm que recorrer a semi-lockdowns – como o que foi decretado ontem por Macron na França, bem menos rígido do que o recomendado pelos especialistas. A pandemia escala com força em muitas partes onde o distanciamento social foi afrouxado, inclusive na Índia, que atravessa uma mortal segunda onda.
A imprensa vem apresentando a pandemia como uma corrida entre as mutações e a vacinação. As mutações se dão ao acaso, mas a seleção natural favorece as variantes mais transmissíveis – a variante inglesa, a sul-africana, a californiana, a de Manaus… Mais tempo a doença corre sem controle, mais mutações ocorrem e parte delas tende a favorecer a difusão do vírus. Mas a equação mutação versus vacina é teórica: se as variantes espalham-se por cada vez mais partes, a vacina flui muito mais lentamente. O problema da propriedade intelectual, acessibilidade das tecnologias de ponta na área, escala de produção, as estruturas de saúde pública e de vacinação limitam as possibilidades de efetivar a promessa de que a vacinação promoveria a “volta ao normal”. E com as variantes, não haverá volta ao “normal” possível mesmo com a difusão da vacina. O normal terá que ser bem requalificado!
É impressionante que grande parte da sociedade – inclusive setores da esquerda crítica – continuam se pautando pelo desejo e pelo “otimismo” das vacinas promovido pela imprensa e não pelo entendimento científico de que estamos frente a interação do vírus com as estruturas sociais. A vacina não é uma panaceia contra a pandemia. Toda pandemia é uma “sindemia” e entramos em uma era de aguçamento das crises sistêmicas, das quais a explosão da covid-19 é uma expressão. Mais do que o número efetivo de mortes, a pandemia produz um estresse brutal sobre os serviços de saúde e a vida social. Ela desorganizou a sociedade que existia e que não voltará a ser o que era. A humanidade terá que aprender a conviver com a covid-19 e reforçar drasticamente seus esforços com saúde e educação públicas, redução das desigualdades e ampliação da estrutura de amparo social – além de readequar o uso das redes sociais para que elas deixem de ser canais de reforço da ignorância difundida conscientemente – caso se queira “vencer” a pandemia. Mesmo que não emerjam rapidamente outras pandemias.
A alternativa a esta mutação civilizacional face ao neoliberalismo será a corrosão do aumento da expectativa média de vida da humanidade, que veio crescendo desde a virada para o século XX, corrosão que será distribuida de forma muito desigual pelo mundo. O ano de 2020 já viu a expectativa de vida cair em vários países; isso se manterá em 2021. Observamos processos deste tipo, em menor escala, na década de 1990, na África com expansão do vírus do HIV na sociedade e na Rússia com o colapso do emprego e dos sistemas de saúde após o fim da URSS.

Uma questão decisiva da “sindemia” é a da sociedade querer fazer as mudanças necessárias para lutar contra a doença ou se deixar sucumbir por ela e pagar o preço em mortos. Mesmo nos EUA, o caso até agora mais bem sucedido de vacinação em massa, o vírus continua mordendo o calcanhar. Eles reduziram as mortes de um patamar de 4000 para mil por dia, mas são mil mortos todos os dias. E, na última semana, o número médio de novos casos subiu 20%, em parte pelas variantes, em parte porque parcelas da população não tomam cuidado, em parte porque certos setores sociais não querem se vacinar. O país parece ingressar em uma quarta onda, enquanto vários governadores – republicanos mas também alguns democratas – promovem a reabertura dos negócios e, no caso dos republicanos, inclusive proibem prefeitos de obrigarem o uso de máscaras. A desconfiança em se vacinar segue forte nos EUA, mas é grande também em países como a França, o Japão e a Rússia. Isso significa que por várias partes as vacinas só se difundirão com mecanismos de pressão institucional como atestados obrigatórios – uma demanda crescente do setor de turismo, entretenimento e das companhias aéreas. Tudo isso coloca no radar uma acirrada “guerra cultural” em torno da vacinação, na qual sempre restarão setores mais arredios.
No caso do Brasil, como a vacinação vai se dar muito lentamente, reduzindo o número de mortes inicialmente entre a parcela mais velha da população, a primeira a ser vacionada, a doença continuará grassando no restante, o que já está produzindo o seu rejuvenescimento. Pessoas mais jovens tendem a lutar por mais tempo contra a doença, ocupando por mais tempo leitos de UTI, mesmo que ao final sucumbam. Enquanto isso, sem um real lockdown, inseparável em nosso país da garantia de renda básica, cresce a fadiga do isolamento ou da propaganda do isolamento e mesmo setores que se precaviam podem terminar se descuidando. Ao mesmo tempo, o bolsonarismo e setores fundamentalistas sabotam o esforço dos governadores: hoje o ministro do STF Kassio Marques Nunes, indicado por Bolsonaro, proibiu restrições a cultos e missas em todo o país promovidos por governadores e prefeitos.
Vemos crescer o desespero com a situação nas elites e o aumento da pressão pela privatização da vacina: os juízes querem ter prioridade, os empresários querem comprar – felizmente até agora as empresas produtoras não estão vendendo para particulares. Por enquanto, empresários terão que viajar para Dubai ou outras partes dos Emirados Árabes Unidos (ou ainda o Paquistão) gastando muito em “férias de vacinas”, se quiserem se imunizar…
A vacinação só começará a escalar no Brasil – e é bom qualificar isso: a vacinação para as pessoas entre 20 e 49 anos, que são as grandes transmissoras da doença – a partir do segundo semestre. Porém, com Bolsonaro e setores evangélicos contra e as novas variantes, nem mesmo isso vai “resolver”. A pandemia é uma doença nova com várias incognitas, mas os EUA são um laboratório das melhores possibilidades para o Brasil; vamos trilhar as piores. Assim, mesmo que descartamos as projeções mais alarmistas de mortos se acumulando nos hospitais, continuaremos a ter milhares de mortos por covid-19 todos os dias pelas semanas e meses vindouros.